terça-feira, 30 de setembro de 2008

ENTREVISTA COM CARLO GINZBURG

Descobertas de um espectador

MARIA LÚCIA G. PALLARES-BURKE
especial para a Folha

Poucos historiadores hoje são tão originais como Carlo Ginzburg, poucos escrevem tão bem quanto ele e ainda menos compartilham de sua notável amplitude de interesses. Ginzburg, que há dez anos ensina na Universidade da Califórnia e divide seu ano entre Los Angeles (EUA) e Bolonha (Itália), nasceu em 1939 numa família judia estabelecida em Torino. Seu pai, Leone Ginzburg (russo de Odessa que emigrou ainda criança para a Itália), foi professor de literatura russa e morreu numa prisão fascista romana quando Carlo tinha cinco anos de idade; enquanto sua mãe, Natalia Ginzburg, se tornou uma das mais famosas e respeitadas escritoras italianas deste século. Desde cedo, a originalidade da produção intelectual de Ginzburg deixou a comunidade acadêmica um tanto atônita. "Um intelectual para se ficar de olho!", como alertou um resenhista americano no início dos anos 70. De fato, seu primeiro livro, publicado quando tinha 27 anos, foi um trabalho polêmico e inovador.

O ponto de partida desse estudo foi a desconcertante resposta dada ao tribunal da Inquisição por um grupo de camponeses italianos acusados de feitiçaria: qualificando-se de "benandanti" ("Andarilhos do Bem", 1966, Companhia das Letras), eles se diziam benfeitores que combatiam as bruxas durante a noite armados de talos de erva doce, enquanto estas empunhavam espigas de milho. Essa resposta inesperada, que contradizia as expectativas dos inquisidores, foi a base de um trabalho que deu uma notável contribuição aos estudos sobre a feitiçaria. No entanto, foi "O Queijo e os Vermes" (1976, Companhia das Letras), o estudo da cosmologia de um moleiro do século 16 (também interrogado pela Inquisição sob a acusação de heresia), que tornou Ginzburg internacionalmente famoso. Desde então, a despeito de seu horror por etiquetas, ele ficou conhecido como um dos líderes da chamada "micro-história", termo que se tornou moda após ter sido usado como título de uma série de livros editados por Ginzburg e Giovanni Levi. Seus outros livros -como o que estuda a história da idéia do sabá das bruxas ao longo de 2.000 anos no mundo euro-asiático ("História Noturna", 1989, Companhia das Letras) e o que reflete sobre um capítulo trágico da história recente da Justiça italiana e sobre as relações entre o papel do juiz e o do historiador ("Il Giudice e lo Storico", 1991)- são reveladores da diversidade de temas e abordagens com que Ginzburg trabalha e que o tornam um historiador difícil de classificar, coisa que, aliás, muito o agrada. Além de livros, Ginzburg tem publicado grande parte do seu trabalho sob a forma de ensaios. O mais famoso deles, traduzido em 12 línguas, tem o intrigante título de "Spie" (Pistas) e fornece, ele próprio, uma pista para o entendimento de toda a obra de Ginzburg. Nesse brilhante ensaio, ele trata de enfatizar a importância do detalhe aparentemente sem importância, de uma frase ou gesto aparentemente trivial, que leva o investigador -quer seja um detetive como Sherlock Holmes, um psicanalista como Freud ou um historiador como o próprio Ginzburg- a fazer importantes descobertas. É com esse especial talento detetivesco que, partindo quase sempre de detalhes aparentemente triviais, ele confronta com elegância, verve e entusiasmo temas e áreas de conhecimento sobre os quais inicialmente nada sabe. Como ele próprio diz, quando está diante de algo que desconhece totalmente, mas sobre o que está a ponto de aprender, sente intensamente o que chama de "a euforia da ignorância". Deve ser, como para um esquiador, o prazer de esquiar na neve fresca, afirma. Foi em seu apartamento em Bolonha que Ginzburg recebeu a Folha. Extremamente simpático, espontâneo e expressivo, Ginzburg discorreu longamente sobre sua trajetória e opções intelectuais, sua atitude diante da fama, sua visão sobre o papel do historiador, sua opinião sobre Foucault, Borges e o pós-modernismo.
Folha - Quais os aspectos de sua origem e formação considera cruciais para o entendimento de suas idéias e interesses?
Carlo Ginzburg - São muitos, mas devo dizer de antemão que, como historiador, sou um pouco cético sobre as explicações teleológicas que vêem os indivíduos como se fossem uma linha reta que vai, sem desvios, da infância à maturidade. Revendo minha vida, poderia me perguntar: quais foram as escolhas cruciais? De certo modo, a vida é como um jogo de xadrez, em que as jogadas cruciais já ocorreram bem antes do xeque-mate. Assim, quando seleciono um momento em que penso ter feito uma escolha decisiva, é possível perceber que já havia limitações, constrangimentos. Minha opção pela história ilustra bem o que quero dizer. Quando era adolescente, queria me tornar romancista como minha mãe, mas logo desisti ao perceber que seria um mau romancista. No entanto, meu envolvimento com a arte da escrita é algo que ainda faz parte de mim. Diria que é como um dique ou um fosso: quando se bloqueia a água, ela se desvia com força para uma direção vizinha. Assim, minha paixão pela ficção se tornou parte de minha paixão pela escrita da história. O mesmo aconteceu com o desejo de me tornar pintor, em que os elementos que foram bloqueados se transformaram em um novo impulso. Tão logo desisti da idéia, por perceber que não passaria de um pintor medíocre, a paixão pela pintura também se tornou parte de mim, e até pensei em me dedicar à história da arte, o que acabei por fazer mais tarde.
Folha - O que o despertou para o estudo do passado?
Ginzburg - Comecei a me desviar da leitura de romances quando estava no fim do liceu, lendo "A História da Europa no Século 19", de Benedetto Croce, livro de que, na verdade, não gostei. Logo depois, decidido a prestar concurso para a concorrida Scuola Normale de Pisa, passei o verão lendo autores que ainda são cruciais para o meu trabalho, como Erich Auerbach, Leo Spitzer, Gianfranco Contini, ou seja, crítica literária baseada em detalhes, em leitura vagarosa e meticulosa de passagens de livros e poemas extensos. Quando fui aceito em Pisa, comecei me dedicando à crítica literária, mas logo ocorreu o encontro que foi decisivo para mim: conheci Delio Cantimori durante uma semana de visita à Pisa, onde ele deu um seminário sobre "Weltgeschichtliche Betrachtungen" (Considerações sobre a História Universal), de Jakob Burckhardt. Essa foi uma experiência diferente e crucial para mim. De surpresa, ele perguntou quem de nós sabia ler alemão; e então nos mandou comparar o texto de Burckhardt com traduções em várias línguas. Após uma semana havíamos lido umas 12 linhas. Isso foi algo marcante, que ainda hoje me inspira. Recentemente comecei um seminário na Universidade da Califórnia dizendo aos meus alunos: "Na Itália há um novo movimento chamado "Slow Food", em oposição à "Fast Food". Meu seminário será em "Slow Reading" (leitura lenta)". Outro historiador proeminente e fascinante que conheci nessa época, por relações familiares, foi Franco Venturi, amigo de meu pai... Foi nessa ocasião que me defrontei novamente com uma escolha que, retrospectivamente, se revelaria crucial em minha vida intelectual: trabalhar com Venturi, um especialista do século 18, ou com Cantimori, um especialista nos heréticos do Renascimento? Os dois eram diferentes em todos os aspectos, inclusive o político. O primeiro havia desempenhado um grande papel na resistência antifascista (quando conhecera meu pai) e se tornara também profundamente anticomunista. Já Cantimori, havia sido fascista, para depois se tornar comunista. E eu escolhi trabalhar com Cantimori! Hoje reconheço que o que me atraiu foi o que nele havia de muito complexo, de não-familiar, de distante, de dolorosamente distante de mim. Sim, acredito que aprendemos mais com o que é distante. Ao não escolher Venturi estava, inconscientemente, reagindo contra uma fidelidade estreita ao antifascismo, ao que era, em suma, o âmago de minha formação. Com Cantimori (e com as reflexões de Gramsci sobre a vitória do fascismo) aprendi que as coisas não são tão simples como parecem!
Folha - Quem são seus principais interlocutores?
Ginzburg - Meus pais são, de certo modo, uma dupla à parte. Meu pai é uma presença invisível, que sinto fortemente, mas com o qual não discuto meu trabalho. Já minha mãe, que foi uma figura crucial em minha formação geral, lia e comentava muito do que escrevia e sinto que me dirijo a ela quando escrevo para uma maior audiência, não profissional. O ato de escrever, no meu entender, é algo que está profundamente relacionado ao ato de comunicar algo a alguém, o que pode parecer óbvio, mas não é, já que há muita coisa escrita (não só por historiadores) que parece ignorar completamente o público, como se a escrita fosse por si só suficiente. Mas, se por um lado, a interação com pessoas é algo importante, por outro lado, acho que muita comunicação é também um mal, causa uma espécie de entropia e, num certo sentido, mata a comunicação. Senti isso de perto quando me vi transformado, mais ou menos da noite para o dia, em historiador da moda. Até meados dos anos 70 eu tinha a impressão de estar totalmente isolado, envolvido em questões com que nenhum historiador se importava -meu primeiro livro, "Os Andarilhos do Bem" (1966), não teve audiência-, e há, sem dúvida, algo muito bom em se estar isolado. Mas, quando escrevi "O Queijo e os Vermes" (1976), que teve sucesso imediato, percebi que a audiência já existia. O mesmo aconteceu com a publicação de meu ensaio sobre "pistas" ("Spie - Radici di un Paradigma Scientifico"), publicado em 1978. Durante duas semanas fui inundado com telefonemas de toda parte da Itália, convidando-me para falar sobre o assunto em Catânia, Milão, e assim por diante. Lembro-me de pensar que corria sério risco de perder o que há de bom no isolamento e de me ver engolido por uma espécie de fluxo de comunicação. Folha - Seu trabalho revela, algumas vezes, um mundo em que o entrelaçamento de textos, traduções e tradições é muito forte, algo que lembra os contos de Jorge Luis Borges. O senhor se inspirou, em algum grau, nesse autor?
Ginzburg - Não, penso que não. Devo confessar que li Borges no início dos anos 60, gostei bastante e acho alguns de seus contos muito poderosos. Todavia o considero um escritor superestimado em demasia. No meu entender, ele não é um autor de primeira classe, mas um excelente escritor de segunda classe. Mas, dito isso, é possível que eu tenha sido influenciado por Borges - sem saber e sem ser agora capaz de reconhecer- via Italo Calvino, um escritor e um homem extraordinário com quem muito aprendi e que foi muito influenciado por Borges, especialmente em suas últimas obras. Um autor é, no meu entender, alguém capaz de nos tornar conscientes de certas dimensões de realidade. Há, por assim dizer, algo de kafkiano na realidade, especialmente na do século 20, que Kafka foi capaz de nos revelar. Esse lado cognitivo da literatura me é muito importante, e aprendi isso com minha mãe e com Calvino. Em meu último livro, "Occhiacci di Legno", há um ensaio intitulado "Ecce", em que desenvolvo um tópico totalmente desconhecido até então por mim. Baseando-me em pesquisas prévias de outros autores e as desenvolvendo em certas direções, comecei a refletir sobre um fato que os estudiosos conhecem, mas sobre o qual não se fala: o fato de Jesus ter nascido de uma virgem ser o resultado de uma profecia que foi mediada por um erro de tradução. Se pensarmos nos santuários em todo o mundo, no culto à Virgem Maria, em tudo, enfim, que decorreu daquela profecia, vemos que, paradoxalmente, um erro de tradução pode ser uma força propulsora e gerar a realidade. Poder-se-ia dizer: ora, isso é Borges! Na verdade, não é Borges, isso é a realidade, mas certamente ele pode nos ajudar a ver isso.
Folha - O senhor já confessou que gosta de estar na periferia, não só da profissão de historiador, mas na periferia de tudo. Muitas vezes, como diz, vai para o seu escritório encontrar-se com alunos como se estivesse indo ao cinema. Diria, então, que procura se relacionar com o mundo como se fosse um espectador?
Ginzburg - O advogado do diabo que há em mim já me fez essa pergunta. Percebo as virtudes e potencialidades intelectuais de se olhar as coisas à distância, como um estranho. E, de certo modo, desde que passei a viver seis meses em Los Angeles e seis meses em Bolonha, dupliquei minhas possibilidades de ser um espectador. No entanto, ao lado de vantagens vejo também perigos nessa posição. E, estranhamente, devo dizer que consegui contrabalançar esses perigos pouco depois de dividir meu ano entre os Estados Unidos e a Itália, quando me envolvi no julgamento de meu amigo Adriano Sofri, condenado à prisão por um crime que não cometeu. Essa foi a primeira vez que me vi pessoalmente comprometido, enquanto historiador, com questões atuais, percebendo que o que escrevesse poderia fazer diferença, o que infelizmente não ocorreu. Mas, se reconheço que há perigo em se adotar a posição de um permanente espectador, por outro, sou cético também quanto a idéia de ser um historiador engajado. Penso que escolher tópicos só porque são os de "nossa época", porque dizem respeito ao "hoje", significa ter uma visão míope e provinciana da história; mesmo porque o que parece totalmente distante da atualidade pode se tornar, repentinamente, o seu foco.
Folha - John Elliot criticou "O Queijo e os Vermes" por ter encorajado a atomização do passado. Como responderia a essa crítica?
Ginzburg - Sou grato a Elliot por ter chamado atenção para meu trabalho e acredito que ele não era tanto contra o livro em si, mas contra a possibilidade de a abordagem que utilizei se transformar na única abordagem da história. Sei que desempenhei, ao lado de outros, o papel de abre-alas a um tipo de trabalho que busca trazer para o centro da história fenômenos até então considerados periféricos, como, por exemplo, a feitiçaria a partir da visão dos feiticeiros e o mundo visto por um moleiro. Mas, por outro lado, muito cedo percebi que aquilo não era o suficiente. Em outras palavras, tendo a batalha sido ganha, o problema era evitar os clichês. Daí não ter argumentado contra Elliot, pois, de certo modo, concordo com ele. A idéia de se opor a chamada micro-história à macro-história não faz sentido, assim como também é absurda a idéia de se opor história social à história política. Na verdade, há alguns anos alguém me perguntou qual era a área mais promissora da história. E eu respondi: a política, pois acredito que se deve escrever história política, se bem que de um novo modo.
Folha - Está querendo dizer que a chamada "história vista de baixo" foi longe demais?
Ginzburg - Sim, pois os arquivos estão cheios de histórias de pessoas desconhecidas. Então, a questão que se coloca, e que exige muita reflexão, é: por que esta história e não outra, por que este documento e não outro? Tenho muito medo de um movimento intelectual se transformar num slogan, pois há sempre o perigo de auto-complacência intelectual, ou seja, de se acreditar no caminho correto, verdadeiro. Não me agrada, em absoluto, a idéia de transformar a história vista de baixo num tipo de slogan, pois, se a idéia é substituir uma abordagem ortodoxa por outra, tudo se torna totalmente desinteressante. Essa é a razão pela qual tenho trabalhado sobre temas variados e a partir de pressupostos variados. Diria que minha própria expectativa consiste em desapontar todas as possíveis expectativas geradas pelos meus trabalhos; caso contrário, eu cairia num tipo de clichê e seria transformado num padre, papel que detesto. Não gosto de pregar, e especialmente para pessoas já convertidas. E nada está mais distante de mim do que idéia de ter uma audiência composta de jovens estudantes de esquerda apaixonados pela história vista de baixo e aguardando de mim uma mensagem nessa direção.
Folha - O senhor se refere ao seu gosto pelo "detalhe de contador de história" e é muito elogiado por seu estilo narrativo. Diria que seu talento para a "narração compulsiva" está relacionado ao romancista que queria ter sido? Qual é a relação entre os historiadores e romancistas?
Ginzburg - Penso que sim, mas, por outro lado, isso mostra como os constrangimentos não trabalham em uma só direção. Você pode se transformar tanto num ateu quanto num santo por ser filho de um padre. O fato de ser filho de Natalia Ginzburg poderia, pois, funcionar tanto como um impulso positivo quanto como um impulso para a resistência. Quanto à narrativa, devo dizer que a noção de narrativa em história tem se moldado nos romances do século 19, mas, se pensarmos em romances do século 20, como os de Proust ou Joyce, fica evidente que a distinção entre ficção e não-ficção se torna muito pouco clara. A esse respeito, uma idéia que muito me atrai é a da relação entre história e ficção como envolvendo competição e desafios mútuos. A história tem sido um desafio para romancistas como Balzac, por exemplo, que reagiu dizendo: "Serei o historiador do século 19!". E então, depois dele, temos Stendhal, Flaubert e outros, criando desafios para os historiadores. A relação entre história e ficção envolve, pois, aprendizado mútuo, com os gêneros se desafiando e respondendo um ao desafio do outro.
Folha - O senhor já sugeriu que não se deve esperar do estudo passado a solução para os nossos problemas. De que modo, no seu entender, o estudo do passado é relevante para nós?
Ginzburg - A história pode nos despertar para a percepção de culturas diferentes, para a idéia de que as pessoas podem ser diferentes e, com isso, contribuir para a ampliação das fronteiras de nossa imaginação. Disso decorreria uma atitude menos provinciana em relação ao passado e ao presente. Dito isso, devo lembrar, no entanto, que é praticamente impossível prever a reação das pessoas e que a "química intelectual" envolvida na recepção da leitura é extremamente complicada. Posso ilustrar isso com a reação à minha própria obra. "Os Andarilhos do Bem" ("I Benandanti", em italiano), por exemplo, se tornou parte da redescoberta da identidade regional de Friuli e soube que hoje há agora, lá, uma banda de rock chamada Benandanti Electronics! Folha - O senhor parece não apreciar muito o trabalho de Michel Foucault e já o criticou como populista. Poderia explicitar melhor suas reservas a ele?
Ginzburg - Devo dizer inicialmente que o considero muito mais interessante do que seus seguidores. O que é especialmente desinteressante nestes é que eles tomam as metáforas de Foucault como explicações, o que é um absurdo. E diria ainda mais: o próprio Foucault antes das metáforas é muito mais interessante. Fiquei surpreso com um volume publicado há uns dois anos com o resumo das aulas que ele deu no Collège de France. Pois elas revelam um Foucault muito melhor, sem todas aquelas metáforas, aquela ostentação. O que quero dizer é que havia vários Foucaults, e um deles era muito, muito brilhante, mas, no meu entender, pouco original. Sob esse ponto de vista, diria que Foucault é um autor extremamente superestimado, pois em grande parte ele nada mais é do que uma nota de rodapé a Nietzsche. O que, afinal, não é grave, se considerarmos que há tão poucos pensadores realmente originais. É inegável, no entanto, que ele descobriu novos tópicos, novas áreas do conhecimento e teve também algumas idéias interessantes, como, por exemplo, a idéia da microfísica do poder -outra metáfora-, que poderia, no entanto, se tornar problema de pesquisa, pois há muito a ser feito nessa direção; o que infelizmente nem Foucault e muito menos seus seguidores fizeram. Pessoalmente ele era extremamente agressivo -de fato, a pessoa mais agressiva que jamais encontrei- e egocêntrico de um modo maníaco, o que lhe permitia vender sua própria imagem com grande eficiência. Lembro-me de estar uma vez num café de Paris conversando com E. P. Thompson e começamos a falar sobre Foucault. Foi quando Thompson disse algo que pensei ter ouvido errado: "Foucault é um charlatão!". Pedi que repetisse, tal minha surpresa, e era isso mesmo. Concordo que certamente havia muito de charlatão em Foucault, mas não só. Muito de sua obra -a da retórica vazia- vai realmente desaparecer, mas há também coisas interessantes que merecem ser preservadas. Seria, pois, extremamente importante se alguém isento se empenhasse em estudar Foucault seriamente, começando com esses resumos de sua aulas. Muito lixo já foi escrito sobre ele, e todos os elogios exacerbados feitos por seus seguidores só contribuíram para depreciá-lo. Está na hora de alguém livrar Foucault dessa tola idolatria.
Maria Lúcia G. Pallares-Burke é professora de história da educação da USP, autora de "The Spectator, o Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 18" e "Nísia Floresta, o Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" (ed. Hucitec).