quarta-feira, 11 de novembro de 2009

HISTÓRIA & LITERATURA: UMA VELHA-NOVA HISTÓRIA

SANDRA PESAVENTO

Por vezes, esta aproximação da história com a literatura tem um sabor de dejà vu, dando a impressão de que tudo o que se apregoa como novo já foi dito e de que se está “reinventando a roda”. A sociologia da literatura desde há muitos anos circunscrevia o texto ficcional no seu tempo, compondo o quadro histórico no qual o autor vivera e escrevera sua obra. A história, por seu lado, enriquecia por vezes seu campo de análise com uma dimensão “cultural”, na qual a narrativa literária era ilustrativa de sua época. Neste caso, a literatura cumpria face à história um papel de descontração, de leveza, de evasão, “quase” na trilha da concepção beletrista de ser um sorriso da sociedade...

Entendemos que, atualmente, estas posturas foram ultrapassadas, não porque não tenham valor em si – no caso da contextualização histórica da narrativa literária - ou porque sejam consideradas erradas – caso de enfocar a literatura somente como passatempo. Tais posturas se tornam ultrapassadas pelas novas questões que se colocam aos intelectuais neste limiar do novo século e milênio. Chamemos nosso tempo pela já desgastada fórmula da “crise dos paradigmas”, que questionou as verdades e os modelos explicativos do real, ou entendamos nosso mundo pelo recente enfoque da globalização, dotado hoje de forte apelo, o que parece evidente é que nos situamos no meio de uma complexificação e estilhaçamento da realidade, onde é preciso encontrar novas formas de acesso para compreendê-la. A rigor, cada geração se coloca problemas e ensaia respostas para respondê-los, valendo-se para isso de um arsenal de conceitos que se renova no tempo.
Se os conceitos são artifícios mentais que se propõem a interrogar e explicar o mundo e que, articulados, resultam em constelações teóricas, ousaríamos dizer que o desafio atual é o e assumir que as ciências humanas se voltam, “grosso modo”, para uma postura epistemológica diferenciada. Não se trata, aqui no caso, de desenvolver toda a gama de conceitos e de redefinições teóricas orientadoras das diferentes correntes que estudam a cultura nestas décadas finais do século e do milênio. Apenas caberia assinalar que tais mudanças passam, com freqüência, pelos caminhos da representação e do simbólico, assim como da preocupação com a escrita da história e sua recepção.
Preferimos concentrar nosso enfoque numa perspectiva que, a nosso ver, tem se revelado profícua neste giro do olhar sobre o mundo e que redimensiona, por sua vez, as relações entre a história e a literatura. Referimo-nos aos estudos sobre o imaginário, que abriram uma janela para a recuperação das formas de ver, sentir e expressar o real dos tempos passados.
Atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta, definindo e qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores, o imaginário representa também o abstrato, o não-visto e não-experimentado. É elemento organizador do mundo, que dá coerência, legitimidade e identidade. É sistema de identificação, classificação e valorização do real, pautando condutas e inspirando ações. É, podemos dizer, um real mais real que o real concreto...
O imaginário é sistema produtor de idéias e imagens que suporta, na sua feitura, as duas formas de apreensão do mundo: a racional e conceitual, que forma o conhecimento científico, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem ao connhecimento sensível.
• 1 Consulte-se, a propósito do tema:
Conceito amplo e discutido1, o imaginário encontra a sua base de entendimento na idéia da representação. Neste ponto, as diferentes posturas convergem: o imaginário é sempre um sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no lugar da realidade, sem com ela se confundir, mas tendo nela o seu referente. Mesmo que os seguidores da História Cultural sejam freqüentemente atacados por negarem a realidade, acusação absurda e mesmo ridícula, nenhum pesquisador, em sã consciência, poderia desconsiderar presença do real.
Apenas – e este apenas é toda a diferença – parte-se do pressuposto de que este real é construído pelo olhar enquanto significado, o que permite que ele seja visualisado, vivenciado e sentido de forma diferente, no tempo e no espaço. O enunciado é simples, mas tem incomodado...
Ao construir uma representação social da realidade, o imaginário passa a substituir-se a ela, tomando o seu lugar. O mundo passa a ser tal como nós o concebemos, sentimos e avaliamos. Ou, como diria Castoriadis, a sociedade, tal como tal é enunciada, existe porque eu penso nela, porque eu lhe dou existência – ou seja, significação – através do pensamento.
• 2 Boia, Lucian. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris, Belles Lettres, 1998.
10Os recentes estudos de Lucian Boia2 , historiador rumeno, acenam para a possibilidade de estabelecer estratégias metodológicas de acesso a este mundo do imaginário, crème de la crème da historiografia atual.
Por um lado, há uma tentativa de viés antropológico (Gilbert Durand, Yves Durand), que se baseia na idéia da possibilidade de divisar traços e rasgos de permanência na construção imaginária do mundo, num processo que beiraria o conceito dos arquétipos fundamentais construtores de sentido e que acompanhariam a trajetória do homem na terra. Por outro lado, em uma versão historicizada (Le Goff), articula-se o entendimento de que os imaginários são construções sociais e, portanto, históricas e datadas, que guardam as suas especificidades e assumem configurações e sentidos diferentes ao longo do tempo e através do espaço.
Admitindo, como propõe Boia, a possibilidade de conjugar, estrategicamente, as duas posturas, que combinadas associariam os traços de permanência de estruturas mentais com as configurações específicas de cada temporalidade, desembocamos na redescoberta da literatura pela história.
Clío se aproxima de Calíope, sem com ela se confundir. História e literatura correspondem a narrativas explicativas do real que se renovam no tempo e no espaço, mas que são dotadas de um traço de permanência ancestral: os homens, desde sempre, expressaram pela linguagem o mundo do visto e do não visto, através das suas diferentes formas: a oralidade, a escrita, a imagem, a música.
O que nos interessa, como especificamos anteriormente, é discutir o diálogo da história com a literatura, como um caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, campo de pesquisa que passou a se desenvolver significativamente no Brasil a partir dos anos 90 e que tem hoje se revelado uma das temáticas mais promissoras em termos de pesquisas e trabalhos publicados.
• 3 Ver, por exemplo, o nº 47 da revista Traverses. Ni vrai ni faux (Traverses, Révue du Centre (...)
Para enfrentar esta aproximação entre estas formas de conhecimento ou discursos sobre o mundo, é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas epistemológicas que diluam fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade verdade/ficção, ou a suposta oposição real/não-real, ciência ou arte3. Nesta primeira abordagem reflexiva, é o caráter das duas formas de apreensão do mundo que se coloca em jogo, face a face, em relações de aproximação e distanciamento.
Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, para confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e que a explicam. Mas, dito isto, que parece aproximar os discursos, onde está a diferença? Quem trabalha com história cultural sabe que uma das heresias atribuídas a esta abordagem é a de afirmar que a literatura é igual à história...
• 4 Só como exemplo, podemos citar a polêmica em torno da obra de Hayden White, Metahistória (São (...)
A literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao imaginário das diferentes épocas. No enunciado célebre de Aristóteles, em sua “Poética”, ela é o discurso sobre o que poderia ter acontecido, ficando a história como a narrativa dos fatos verídicos. Mas o que vemos hoje, nesta nossa contemporaneidade, são historiadores que trabalham com o imaginário e que discutem não só o uso da literatura como acesso privilegiado ao passado — logo, tomando o não-acontecido para recuperar o que aconteceu! — como colocam em pauta a discussão do próprio caráter da história como uma forma de literatura, ou seja, como narrativa portadora de ficção!4
Tomemos a faceta do não acontecido, elemento perturbante para um historiador que tem como exigência o fato de algo ter ocorrido um dia. Mas, a rigor, de qual acontecido falamos? Se estamos em busca de personagens da história, de acontecimentos e datas sobre algo que se deu no passado, sem dúvida a literatura não será a melhor fonte a ser utilizada. Falamos em fonte? A coisa se complica: como a literatura, relato de um poderia ter sido, pode servir de traço, rastro, indício, marca de historicidade, fonte, enfim, para algo que aconteceu?
A sintonia fina de uma época, fornecendo uma leitura do presente da escrita, pode ser encontrada em um Balzac ou em um Machado, sem que nos preocupemos com o fato de Capitu, ou do Tio Goriot e de Eugène de Rastignac, terem existido ou não. Existiram enquando possibilidades, como perfis que retraçam sensibilidades. Foram reais na “verdade do simbólico” que expressam, não no acontecer da vida. São dotados de realidade porque encarnam defeitos e virtudes dos humanos, porque nos falam do absurdo da existência, das misérias e das conquistas gratificantes da vida. Porque falam das coisas para além da moral e das normas, para além do confessável, por exemplo.
• 5 Ricoeur, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983/5. 3v
Mas, sem dúvida, dirá alguém, no delineamento de tais personagens e na articulação de tais intrigas, houve um Honoré de Balzac e um Joaquim Maria Machado de Assis, o que não é pouca coisa... Sim, por certo, longe de negar a genialidade dos autores, ressaltamos a existência imprescindível dos narradores de uma trama, que mediatizam o mundo do texto e o do leitor. E não esqueçamos, como alerta Paul Ricoeur 5, que os fatos narrados na trama literária, existiram de fato para a voz narrativa!
Mas, a rigor, o processo acima descrito para o âmbito da literatura não será o mesmo nos domínios da História?
Neste campo temos também um narrador – o historiador – que tem também tarefas narrativas a cumprir: ele reúne os dados, seleciona, estabelece conexões e cruzamentos entre eles, elabora uma trama, apresenta soluções para decifrar a intriga montada e se vale das estratégias de retórica para convencer o leitor, com vistas a oferecer uma versão o mais possível aproximada do real acontecido.
O historiador não cria personagens nem fatos. No máximo, os “descobre”, fazendo-os sair da sua invisibilidade. A título de exemplo, temos o caso do negro, recuperado como ator e agente da história desde algumas décadas, embora sempre tenha estado presente. Apenas não era visto ou considerado, tal como as mulheres ou outras tantas ditas “minorias”.
Historiadores também mediatizam mundos, conectando escrita e leitura. Dele também se espera performance exemplar, genial, talvez...E ele também não tem, admitamos, certezas absolutas de chegar lá, na tal temporalidade já escoada, irremediavelmente perdida e não recuperável, do acontecido.
Na reconfiguração de um tempo - nem passado nem presente, mas tempo histórico reconstruído pela narrativa -, face à impossibilidade de repetir a experiência do vivido, os historiadores elaboram versões. Versões plausíveis, possíveis, aproximadas, daquilo que teria se passado um dia. O historiador atinge pois a verossimilhança, não a veracidade. Ora, o verossímil não é a verdade, mas algo que com ela se aparenta. O verossímil é o provável, o que poderia ter sido e que é tomado como tal. Passível de aceitação, portanto.
Registramos, com isto, a mudança deliberada do tempo verbal: o poderia, o teria sido, com o que a narrativa histórica, representação do passado, se aproximaria, perigosamente, da definição aristotélica da poesia, pertencente ao campo da ficção. Ou seja, as versões do acontecido são, de forma incontornável, um poderia ter sido. A representação do passado feita pelo historiador seria marcada por esta preocupação ou meta: a da de vontade de chegar lá e não da certeza de oferecer a resposta certa e única para o enigna do passado.
Assim, a noção proposta por Paul Ricoeur de “representância” vem ao encontro desta propriedade do trabalho do historiador: mais do que construir uma representação, que se coloca no lugar do passado, ele é marcado pela vontade de atingir este passado. Trata-se de uma militância no sentido de atingir o inatingível, ou seja, o que um dia se passou, no tempo físico já escoado.
O segredo semântico de aproximação dos discursos se encerra neste tempo verbal: “teria acontecido”. O historiador se aproxima do real passado, recuperando com o seu texto que recolhe, cruza e compõe, evidências e provas, na busca da verdade daquilo que foi um dia. Mas sua tarefa é sempre a de representação daquela temporalidade passada. Ele também constrói uma possibilidade de acontecimento, num tempo onde não esteve presente e que ele reconfigura pela narrativa. Nesta medida, a narrativa histórica mobiliza os recursos da imaginação, dando a ver e ler uma realidade passada que só pode chegar até o leitor pelo esforço do pensamento.
• 6 Consultar, a propósito da literatura na sua aproximação com a história, envolvendo a questão (...)
Por outro lado, no aprofundamento destas questões, constata-se que tem sido tradicional reservar à literatura o atributo da ficção, negando esta condição ou prática ao campo da história6.
• 7 Jauss, Hans Robert. L’usage de la fiction en histoire. Le Débat, Paris, Gallimard, n.54, (...)
Num giro de análise, poderíamos também acrescentar que o fato histórico é, em si, também criação pelo historiador, mas na base de documentos “reais” que falam daquilo que teria acontecido. Como diz Jauss, não é possível manter ainda uma distinção ingênua e radical entre res factae e res fictae7, como se fosse possível chegar, por meio de documentos reais, a uma verdade incontestável e, por outro lado, por meio de artifícios, ficar no mundo da fantasia ou pura invenção.
No contrafluxo da ficção, o que teríamos, a verdade? Se esta for, como propõe Aristóteles, a correspondência do discurso com o real, já vimos que, nos caminhos do resgate do real passado, a história se baseia mais em versões e possibilidades do que certezas. O distante passado, como atingí-lo na sua integridade? E mesmo que, por um passe de mágica, para um outro tempo fôssemos transportados, na posição de testemunha ocular dos fatos, o que veríamos? Sem duvida, nossa visão seria diferente da do companheiro que nos acompanhasse nesta viagem fantástica no túnel do tempo. E, ao retornar ao nosso tempo, teríamos múltiplas versões do acontecido!
Os historiadores do tempo presente ou da história oral que o digam quão difícil é lidar com os testemunhos dos diferentes protagonistas de um mesmo incidente ou fato histórico. Quantos relatos e versões se tecem em cima de um mesmo fato!
Para construir a sua representação sobre o passado a partir das fontes ou rastros, o caminho do historiador é montado através de estratégias que se aproximam das dos escritores de ficção, através de escolhas, seleções, organização de tramas, decifração de enredo, uso e escolha de palavras e conceitos.
Mas então, poderíamos nos perguntar, os historiadores, tal como os escritores de literatura, produziriam versões imaginárias do real? A narrativa histórica seria uma espécie de ficção?
Há, sem dúvida, uma definição corrente, explícita no conhecido dicionário Aurélio, que afasta da história a ficção: em uma primeira acepção, ficção é o ato de fingir, simular, e em outra, significa coisa imaginária, fantasia, invenção, criação. Tal definição corresponde a um estatuto reconhecido, a um senso comum que chega até a academia: a história é diferente, é a narrativa organizada dos fatos acontecidos, logo, não é fingimento ou engodo, delírio ou fantasia.
• 8 Davis, Natalie. Du conte et de l’histoire.Le Debat. Paris, Gallimard, nº 54, mars-avril 1989, (...)
• 9 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo, Companhia (...)
• 10 Ginzburg, Carlo. op.cit., p. 57.
Preferimos definir a ficção na sua acepção que, como diz Natalie Davis8 estava ainda presente no século XVI, antes do cientificismo do século XIX converter a história na “rainha das ciências” e de colocar, não no seu horizonte mas no seu campo efetivo de chegada, a verdade verdadeira do acontecido. Este posicionamento antigo nos fala da ficção/fingere como uma criação a partir do que existe, como construção que se dá a partir de algo que deixou indícios. A palavra fictio, corrobora Ginzburg, está ligada a figulus, oleiro9, ou seja, aquele que cria a partir de algo. No caso do historiador, este algo que existiu seriam as fontes, traços da evidência de um acontecido, espécie de provas para a construção do passado. Na complementação deste entendimento, que afasta a ficção da pura fantasia, Carlo Ginzburg cita Isidoro de Sevilha, quando este escreveu dizendo que falso era o não verdadeiro, fictio [fictum] era o verossímil.10
Bem sabemos que o historiador está preso às fontes e à condição de que tudo tenha acontecido. O historiador não cria o traço no seu sentido absoluto, eles os descobre, os converte em fonte e lhes atribui significado. Há que considerar ainda que estas fontes não são o acontecido, mas rastros para chegar a este. Se são discursos, são representações discursivas sobre o que se passou; se são imagens, são também construções, gráficas ou pictóricas, por exemplo, sobre o real. Assim, os traços que chegam do passado suportam esta condição dupla: por um lado, são restos, marcas de historicidade; por outro, são representações de algo que teve lugar no tempo.
Mas, a rigor, é o historiador que transforma estes traços em fontes, através das perguntas que ele faz ao passado. Atribuindo ao traço a condição de documento ou fonte, portador de um significado e de um indício de resposta às suas indagações, o historiador transforma a natureza do traço. Transforma o velho em antigo, ou seja, rastro portador de tempo acumulado e, por extensão de significações. Como fonte, o traço revela, desvela sentidos.
A rigor, o historiador tem o mundo à sua disposição. Tudo para ele pode se converter em fonte, basta que ele tenha um tema e uma pergunta, formulada a partir de conceitos, que problematizam este tema e o constroem como objeto. É a partir daí que ele enxergará, descobrirá, coletará documentos, amealhando indícios para a decifração de um problema. Cabe ao historiador, a partir de tais elementos, explicar o como daquele ocorrido, inventando o passado.
Mas, se ele inventa o passado, esta é uma ficção controlada, o que se dá em primeiro lugar pela sua tarefa de historiador no âmbito do arquivo, no trato das fontes.
Em segundo lugar, há um condicionamento a esta liberdade ficcional imposta pelo compromisso do historiador com relação ao seu ofício. O historiador quer e se empenha em atingir o real acontecido, uma verdade possível, aproximada do real tanto quanto lhe for permitido. Esta é a sua meta, a razão de seu trabalho e este desejo de verdade impõe limites à criação.
Em terceiro lugar, a ficção na história é controlada pelas estratégias de argumentação – a retórica - e pelos rigores do método – testagem, comparação e cruzamento -, na sua busca de reconstituir uma temporalidade que se passou por fora da experiência do vivido. Sua versão do passado deve, hipoteticamente, poder “comprovar-se” e ser submetida à testagem, pela exibição das fontes, bibliografia, citações e notas de rodapé, como que a convidar o leitor a refazer o caminho da pesquisa se duvidar dos resultados apresentados. O texto, por sua vez, deve convencer o público leitor. O uso dos conceitos, das palavras, a construção de argumentos devem ser aceitos, colocando-se no lugar do ocorrido, em explicação satisfatória.
Mas – e esta parece ser uma especificidade muito importante – a reconstituição do passado vivido pela narrativa histórica dá a ver uma temporalidade que só pode existir pela força da imaginação, como já foi apontado. Ficção, pois? Ficção controlada? Ficção histórica, possível dentre de certos princípios? E este, no caso, se apoiariam em desejo de veracidade e resultado de verossimilhança?
A história é um romance verdadeiro, disse o iconoclasta Paul Veyne no início da década de ’70. Verdadeiro porque aconteceu, mas romance porque cabe ao historiador explicar o como. E, nesta instância, na urdidura do texto e da argumentação, na seleção dos argumentos e das próprias marcas do passado erigidas em fontes é que se coloca a atuação ficcional do historiador. Como diz Jans Robert Jauss, o historiador faz sempre uma ficção perspectivista da história. Não há só um “recolhimento do passado” nos arquivos. A história é sempre construção de uma experiência, que reconstrói uma temporalidade e a transpõe em narrativa. Chamamos a isto de estetização da História, ou seja, a colocação em ficção – ou narrativização - da experiência da história.
Mas nos voltemos agora para uma segunda instância de análise, que é a do uso da literatura pela história, sem que com isso estabeleçamos hierarquias de valor sobre os modos de dizer o real. Quando nos referimos ao uso da literatura pela história, nos reportamos ao lugar de onde se enuncia o problema e a pergunta que, no caso, é o campo da história.
Sob esta segunda ótica, aí sim, podemos dizer que o diálogo se estabelece a partir de uma hierarquização entre os campos, a partir do lugar onde são colocadas as questões ou problemas. E, neste caso, a partir deste particular e específico ponto de vista, podemos dizer que, quando a história coloca determinadas perguntas, ela se debruça sobre a literatura como fonte.
Nesta medida, um diálogo se estabelece no jogo transdisciplinar e interdiscursivo das formas de conhecimento sobre o mundo, onde a história pergunta, e a literatura responde. É preciso ter em conta, contudo, que os discursos literário e histórico são formas diferentes de dizer o real. Ambos são representações construídas sobre o mundo e que traduzem, ambos, sentidos e significados inscritos no tempo. Entretanto, as narrativas histórica e a literárira guardam com a realidade distintos níveis de aproximação.
A recorrência do “uso” de um campo pelo outro é, pois, possível, a partir de uma postura epistemológica que confronta as tais narrativas, aproximando-as num mesmo patamar, mas que leva em conta a existência de um diferencial. Historiadores trabalham com as tais marcas de historicidade e desejam chegar lá. Logo, freqüentam arquivos e arrecadam fontes, se valem de um método de análise e pesquisa, na busca de proximidade com o real acontecido. Escritores de literatura não tem este compromisso com o resgate das marcas de veracidade que funcionam como provas de que algo deva ter existido. Mas, em princípio, o texto literário precisa, ele também, ser convincente e articulado, estabelecendo uma coerência e dando impressão de verdade. Escritores de ficção também contextualizam seus personagens, ambientes e acontecimentos para que recebam aval do público leitor.
Mas se a literatura pode ser fonte para a história, uma terceira instância de análise se introduz, que é a da especifidade e riqueza do texto ficcional.
Sem dúvida, sabemos do potencial mágico da palavra e da sua força em atribuir sentido ao mundo. O discurso cria a realidade e faz ver o social a partir da linguagem que o designa e o qualifica. Já o texto de ficção literária é enriquecido pela propriedade de ser o campo por excelência da metáfora. Esta figura de linguagem, pela qual se fala de coisas que apontam para outras coisas, é uma forma da interpretação do mundo que se revela cifrada. Mas talvez aí esteja a forma mais desafiadora de expressão das sensibilidades diante do real, porque encerra aquelas coisas “não-tangíveis” que passam pela ironia, pelo humor, pelo desdém, pelo desejo e sonhos, pela utopia, pelos medos e angústias, pelas normas e regras, por um lado, e pelas suas infrações, por outro. Neste sentido, o texto literário atinge a dimensão da “verdade do simbólico”, que se expressa de forma cifrada e metafórica, como uma forma outra de dizer a mesma coisa.
A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por vezes cifrada, as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu.
A literatura cumpre, assim, um efeito multiplicador de possibilidades de leitura. Estaríamos diante do “efeito de real” fornecido pelo texto literário que consegue fazer seu leitor privilegiado — no caso, o historiador, com o seu capital específico de conhecimento — divisar sob nova luz o seu objeto de análise, numa temporalidade passada. Nesta dimensão, o texto literário inaugura um plus como possibilidade de conhecimento do mundo.
• 11 Expresso por mim utilizada para um artigo que discutir imagens pictóricas e literárias e o seu (...)
O mundo da ficção literária — este mundo verdadeiro das coisas de mentira11 — dá acesso para nós, historiadores, às sensibilidades e ás formas de ver a realidade de um outro tempo, fornecendo pistas e traços daquilo que poderia ter sido ou acontecido no passado e que os historiadores buscam. Isto implicaria não mais buscar o fato em si, o documento entendido na sua dimensão tradicional, na sua concretude de “real acontecido”, mas de resgatar possibilidades verossímeis que expressam como as pessoas agiam, pensavam, o que temiam, o que desejavam.
A verdade da ficção literária não está, pois, em revelar a existência real de personagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões em jogo numa temporalidade dada. Ou seja, houve uma troca substantiva, pois para o historiador que se volta para a literatura o que conta na leitura do texto não é o seu valor de documento, testemunho de verdade ou autenticidade do fato, mas o seu valor de problema. O texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do simbólico através de fatos criados pela ficção.
Mais do que isso, o texto literário é expressão ou sintoma de formas de pensar e agir. Tais fatos narrados não se apresentam como dados acontecidos, mas como possibilidades, como posturas de comportamento e sensibilidade, dotadas de credibilidade e significância.
Nesta última dimensão de análise que pensa a especificidade da literatura como fonte, cabe retomar a já mencionada reconfiguração temporal. O conceito, desenvolvido por Ricoeur de maneira exemplar, nos coloca diante da possibilidade de pensar a literatura na relação com a história como um inegável e recorrente testemunho de seu tempo.
• 12 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Op.cit, p. 55.
Admitimos que a literatura é fonte de si mesma enquanto escrita de uma sensibilidade, enquanto registro, no tempo, das razões e sensibilidades dos homens em um certo momento da história. Dos seus sonhos, medos, angústias, pecados e virtudes, da regra e da contravenção, da ordem e da contramão da vida. A literatura registra a vida. Literatura é, sobretudo, impressão de vida. E, com isto, chegamos a uma das metas mais buscadas nos domínios da História Cultural: capturar a impressão de vida, a energia vital, a enargheia presente no passado, na raiz da explicação de seus atos e da sua forma de qualificar o mundo. E estes traços, eles podem ser resgatados na narrativa literária, muito mais do que em outro tipo de documento. Como afirma Ginzburg, a poesia- ou literatura – constitui uma realidade que é verdadeira para todos os efeitos, mas não no sentido literal.12
Sem dúvida que esta dimensão poderá ser contestada, sob o argumento de que só a “literatura realista”, na linha de Balzac ou Zola, poderia ser alternativa ao historiador para recuperar as sensibilidades de uma temporalidade determinada, atuando como aquele plus documental de que se falou. Mas o que queremos afirmar é que mesmo a literatura que reinstala o tempo de um passado remoto ou aquela que projeta, ficcionalmente, a narrativa para o futuro são, também, testumunhos do seu tempo.
Romances da Cavalaria no século XIX dão a ver o imaginário que o mundo novecentista construía sobre a Idade Média, assim como a ficção cientifica de um Jules Verne possibilita a leitura das utopias do progresso que embalavam os sonhos e desejos dos homens do século passado. Deste ponto de vista, tudo é, sob o olhar do historiador, matéria “histórica” para a sua análise.
Em suma, entendemos que todas estas questões enunciadas que, pensamos, revela a riqueza de uma velha-nova história, se encontram ao abrigo da postura que se convencionou chamar de história cultural. Esta, a partir de seus pressupostos e preocupações, proporciona uma abertura dos campos de pesquisa para a utilização de novas fontes e objetos, entre as quais se encontra o texto literário.

Notas
1 Consulte-se, a propósito do tema:
Castoriadis, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
Durand, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1984.
Durand, Gilbert. L’imagination symbolique. Paris: PUF, 1989.
Le Goff, Jacques. L’imaginaire médieval. Paris: Gallimard, 1985.
Le Goff, Jacques. Histoire et imaginaire. Paris: Poiesis, 1986.
Thomas, Jöel, org. Introductions aux méthologies de l’imaginaire. Paris: Ellipses, 1998.
2 Boia, Lucian. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris, Belles Lettres, 1998.
3 Ver, por exemplo, o nº 47 da revista Traverses. Ni vrai ni faux (Traverses, Révue du Centre Georges Pompidou, Paris, n.47, 1989).
4 Só como exemplo, podemos citar a polêmica em torno da obra de Hayden White, Metahistória (São Paulo: Edit. da Universidade de São Paulo, 1992).
5 Ricoeur, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983/5. 3v
6 Consultar, a propósito da literatura na sua aproximação com a história, envolvendo a questão da ficção, os números 54, 56 e 86 da revista Le Débat.
7 Jauss, Hans Robert. L’usage de la fiction en histoire. Le Débat, Paris, Gallimard, n.54, mars/avril 1989. p.81.
8 Davis, Natalie. Du conte et de l’histoire.Le Debat. Paris, Gallimard, nº 54, mars-avril 1989, p. 140.
9 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 55.
10 Ginzburg, Carlo. op.cit., p. 57.
11 Expresso por mim utilizada para um artigo que discutir imagens pictóricas e literárias e o seu uso pela história: Pesavento, Sandra Jatahy. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história. Estudos históricos. Arte e história. Rio de Janeiro, FGV, nº30, p. 56-75.
12 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Op.cit, p. 55.

Para citar este artículo
Referencia electrónica
Sandra Jatahy Pesavento, « História & literatura: uma velha-nova história », Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2006, [En línea], Puesto en línea el 28 janvier 2006. URL : http://nuevomundo.revues.org/index1560.html.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

OS DESAFIOS TEÓRICOS DA HISTÓRIA E A LITERATURA

A proposta deste artigo é contribuir para o debate em torno das conexões entre a História e a Literatura no sentido de apontar os desafios teóricos e metodológicos dele decorrentes, estimando o impacto na historiografia ocidental a partir da crise dos paradigmas de interpretação da realidade, ao mesmo tempo em que observamos o ressurgimento da narrativa, exigindo uma resposta de historiadores e literatos neste fim de século.
Carlos Vinícius Costa de Mendonça
Prof. Adjunto do Departamento de História – UFES
Gabriela Santos Alves
Mestranda em Estudos Literários – UFES


O historiador não ajuda ninguém construindo uma refinada continuidade entre o mundo presente e o que procedeu. Ao contrário, necessitamos de uma história que nos eduque a enfrentar descontinuidades mais do que antes; pois a descontinuidade, o dilaceramento e o caos são o nosso dote." Hayden White

As relações entre literatura e história estão no centro do debate da atualidade e apresentam-se no bojo de uma série de constatações relativamente consensuais que caracterizam a nossa contemporaneidade na transição do século XX para o XXI: a crise dos paradigmas de análise da realidade, o fim da crença nas verdades absolutas legitimadoras da ordem social e a interdisciplinaridade.
Bronislaw Baczko pondera que a perplexidade atual das ciências humanas deriva de um sentimento de perda da certeza das normas fundamentadoras de um discurso científico unitário sobre o homem e a sociedade. Na medida em que deixa de ter sentido uma teoria geral de interpretação dos fenômenos sociais, apoiada em idéias e imagens legitimadoras do presente e antecipadoras do futuro (o progresso, o homem, a civilização), ocorre uma segmentação das ciências humanas e um movimento paralelo de associação multidisciplinar em busca de saídas.1
Assim, novos objetos, problemas e sentidos se ensaiam, marcados por um ecletismo teórico, uma ótica interdisciplinar e comparativista e um grande apelo em termos de fascínio temático. Portanto, o diálogo entre história e literatura, enquanto objeto de estudo, é uma saída deste esvaziamento e desta sedução.
A compreensão de que a literatura é, além de um fenômeno estético, uma manifestação cultural, portanto uma possibilidade de registro do movimento que realiza o homem na sua historicidade, seus anseios e suas visões do mundo, tem permitido ao historiador assumi-la como espaço de pesquisa.
Assim, mesmo que os literatos a tenham sempre produzido sem um compromisso com a verdade dos fatos, construindo um mundo singular que se contrapõe ao mundo real, é inegável que, através dos textos artísticos, a imaginação produz imagens, e o leitor, no momento em que, pelo ato de ler, recupera tais imagens, encontra uma outra forma de ler os acontecimentos constitutivos da realidade que motiva a arte literária.2
Revisando os momentos em que os estudos literários abordam sistematicamente a relação entre os textos de ficção e os textos de história, são notáveis os períodos que compreendem os estudos poéticos da Antigüidade, as pesquisas estéticas do Romantismo – século XIX e as novas propostas teóricas gestadas ao longo do século XX, que vieram a se tornar a opção teórica de inúmeros pesquisadores nesse fim de século.
Como se vê, a história da discussão sobre a aproximação ou separação entre literatura e história remonta ao início da teorização da arte ocidental, o que torna necessário retroceder brevemente às idéias de Aristóteles para se entender a construção desses paradigmas antitéticos e suas configurações tanto na teoria literária quanto na historiografia.
O filósofo estabeleceu uma antítese entre história e poesia em sua obra Poética, criando assim obstáculos quase intransponíveis entre as duas.3 Para ele, a poesia encerra mais filosofia, elevação e universalidade, por falar de verdades possíveis ou desejáveis. Por seu turno, a história trataria de verdades particulares, acontecidas, não universais:

(...) não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso e prosa (...), diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por referir-se ao universal entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens. Outra não é a finalidade da poesia, embora dê nomes particulares aos indivíduos; o particular é o que Alcibíades fez ou que lhe aconteceu.4

Assim concebidas, arte e história, ficção e verdade, constituíram manifestações opostas da inteligência. Com o avanço do racionalismo nos tempos modernos, tal contraposição seria acentuada, resultando na inversão dos termos apresentados por Aristóteles.
Poesia, arte e ficção seriam progressivamente desqualificadas como modos do conhecimento da realidade, passando a habitar um terreno quase etéreo: lugar de fantasia para o artista ou de metafísica para o intelectual.5
Do outro lado habitariam as ciências dos homens sensatos e progressistas, com suas leis e seus postulados de objetividade, racionalidade ou referencialidade cumprindo funções utilitárias.
Assim, solidificou-se a separação entre ficção e verdade, base do divórcio entre a arte e a ciência. As noções de história desde o século XIX, que pretenderam a cientificidade da disciplina, ou as manifestações do realismo e do naturalismo na literatura do mesmo período, tiveram como fundamento essa distinção. Segundo Luiz Costa Lima, aliás, "um verdadeiro veto ao ficcional, um controle do imaginário, decorrente do racionalismo, pôde ser assistido desde meados do século XVIII, atravessando os mais variados discursos, até mesmo os artísticos".6
No entanto, essa mesma separação daria suporte às correntes que, a partir do romantismo, procuraram reafirmar o valor intrínseco e superior da poesia e da literatura ficcional, manifestando uma repulsa à ciência.
A teoria literária, que se constituiu institucionalmente no século XX, ainda que tenha abandonado os ideais românticos ao assumir o pendor científico, também buscaria assegurar a singularidade do literário e do estético, diante das ciências e das outras linguagens e discursos, como a história.
Desse modo, a concepção aristotélica seria, mais uma vez, retomada para demarcar posições. A literatura, nessa perspectiva, exprimiria o verossímil (a impressão de verdade, não necessariamente falsa, que se inclui no espaço ficcional), enquanto a história pretenderia o verdadeiro (no sentido da representação do acontecimento particular).7
Assim, a teoria instituída no século XIX conseguiu assegurar até algumas décadas do século XX a noção de que literatura e história são campos distintos, indicando que, enquanto um ficcionaliza o real, o outro o estabelece. Baseada nessa visão, a história autodenominou-se a única possibilidade de registro da realidade do passado, não reconhecendo essa capacidade na literatura.
Essa teorização, contudo, ao propor a separação dessas formas de conhecimento, ignorou as produções ficcionais e históricas de sua época, o que fortificou a contestação a essa conceituação por parte da teoria e da arte pós-moderna.
Nesse processo, foram fundamentais os questionamentos a respeito do próprio estatuto da história e as tentativas de compreender o papel social do historiador. O processo de produção do texto histórico também passou a ser interpretado à luz da experiência literária. Pedro Brum Santos comenta a atitude de muitos estudiosos da escrita histórica, dizendo que eles têm

(...) sugerido que a historiografia deve utilizar-se das variações e criatividades que podem ser constatadas nos diversos níveis da narrativa literária. Desse modo, incorporaria no próprio discurso o caráter inerente relativo a todo conhecimento sobre o passado.8

Dessa reflexão, resultou a ponderação de cientificidade da narrativa histórica e a instauração da idéia de relatividade do conhecimento nela revelado. Essas leituras basearam-se na fragilidade da realidade histórica enquanto produto da subjetividade, a qual é ilimitada e passível de erros. Há, ainda, a interpretação dos fatos dada pelo sujeito historiador, a partir da seleção e organização da realidade que ocorrem numa narrativa histórica.
Desse modo, embora a descrença no discurso científico unitário sobre o homem e a sociedade tenha se agudizado no interior desse quadro da crise dos paradigmas de interpretação do real na transição do século XX para o XXI, o debate sobre a história e suas conexões com os gêneros literários já estava colocado desde a década de setenta do século passado.9
Pautada por uma ótica interdisciplinar, esta linha de reflexão vem acompanhando a propensão de se interrogar as fronteiras de conhecimento que a tradição institucional construiu. Nesse sentido, é fundamental localizar e caracterizar essa polêmica a fim de consubstanciar o meu problema teoricamente.
As proposições de Lawrence Stone, no artigo O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma velha história de 1979, podem ser consideradas como um marco da polêmica. Stone anunciava um ressurgimento da narrativa na historiografia recente, em conseqüência do declínio da história científica generalizante.

Associando a história narrativa aos trabalhos dos novos historiadores, o autor enfatizou que tal tendência significaria a atualização de uma tradição que “durante dois séculos encarou a narrativa como modalidade ideal, pois os historiadores sempre contaram estórias.”10

Esse caminho aberto por Stone, o da inclinação hegemônica às ciências sociais para o campo dos estudos literários, exige referências a outros estudos da época que também tentaram demonstrar, cada qual à sua maneira, a filiação da história à literatura.
Assim, uma das contribuições foi dada por Peter Gay em O estilo da história que, realizando um estudo dos estilos de quatro historiadores clássicos – Gibbon, Macaulay, Ranke e Burckhardt – indagou sobre a natureza do próprio conhecimento histórico: ciência ou arte, verdade ou ficção? Concluindo, sobre a natureza dual da história: ciência e arte simultaneamente.11
Num ensaio precursor da epistemologia da história, Paul Veyne em Como se escreve a História, reafirmou a propensão da história à narrativa e à literatura, sugerindo que o historiador, no seu ofício, agiria como o literato, tomado pela trama e pelo enredo urdido subjetivamente.12
Ainda conforme a exposição de Veyne, o historiador deve se apropriar da noção de intriga, elaborada pela ficção, recurso que possibilitará uma compreensão aberta do real. É o narrador, através de sua intriga, que faz emergir do esquecimento a matéria desordenada de acontecimentos do real, pois atribui sentido aos fatos.
Assim, ao escolher os fatos que merecerão destaque na construção de suas tramas, o historiador não deixa de inventar, à sua maneira. Se tal visão literária da narrativa histórica pode ser interpretada como uma veleidade do historiador, não custa recorrer à autoridade de um consagrado escritor de romances, José Saramago, para quem

(...) parece legítimo dizer que a História se apresenta como parente próxima da ficção, dado que, ao rarefazer o referencial, procede a omissões, portanto a modificações, estabelecendo assim com os acontecimentos relações que são novas na medida em que incompletas se estabeleceram. È interessante verificar que certas escolas históricas recentes sentiram como que uma espécie de inquietação sobre a legitimidade da História tal qual vinha sendo feita, introduzindo nela, como forma de esconjuro, se me é permitida a palavra, não apenas alguns processos expressivos da ficção, mas da própria poesia. Lendo esses historiadores, temos a impressão de estar perante um romancista da História, não no incorreto sentido da História romanceada, mas como o resultado duma insatisfação tão profunda que, para resolver-se, tivesse de abrir-se à imaginação.13

É interessante notar que tal observação procede de um escritor de ficção, e ainda mais, um dos criadores daquilo que se convencionou chamar romance histórico contemporâneo, o que permite reforçar os laços de vizinhança entre história e literatura.
Retomando a discussão a partir do significado da narrativa e assumindo que um mundo exibido por uma obra ficcional é sempre um mundo temporal, Paul Ricoeur afirma que "o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal."14

Dessa maneira concebidas, historiografia e narrativa de ficção são formas de conhecimento do mundo, em sua temporalidade, o que levaria a contestar tanto as noções puramente estéticas da literatura quanto a idéia da escrita da história como discurso científico de natureza oposta à narrativa.
Ainda levando em consideração o aspecto tempo, tanto para o acontecimento quanto como para seu relato, Benedito Nunes, rastreando o pensamento de Ricoeur, argumenta que

(...) narrar é contar uma história, e contar uma história é desenrolar a experiência humana do tempo. A narrativa ficcional pode fazê-lo alterando o tempo cronológico por intermédio das variações imaginativas que a estrutura auto-reflexiva de seu discurso lhe possibilita, dada a diferença entre o plano do enunciado e o plano da enunciação. A narrativa histórica desenrola-o por força da mímeses, em que implica a elaboração do tempo histórico, ligando o tempo natural ao cronológico.15

Com a proposta de refletir sobre literatura na perspectiva da história social, Sidney Chalhoub e Leonardo Pereira assumem a proposta de historicizar a obra literária – seja ela romance, conto, poesia ou crônica –, inserindo-a no movimento da sociedade, investigando suas redes de interlocução social, destrinchando não a sua suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social.16
A partir da análise de obras de Machado de Assis, José de Alencar, Mário de Andrade e Jorge Amado, entre outros, o livro organizado pelos autores citados argumenta que a obra literária é uma evidência histórica objetivamente determinada, ou seja, situada no processo histórico; necessita, portanto, ser adequadamente interrogada a partir de suas propriedades específicas:

Em suma, é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem reverências, sem reducionismos estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao interrogatório sistemático que é uma obrigação do nosso ofício. Para historiadores a literatura é, enfim, testemunho histórico.17

Indagando a historiografia do ângulo da lingüística, Roland Barthes em O rumor da língua, interrogou sobre o real dos fatos no discurso histórico, considerando que ele próprio possuiu uma existência lingüística: é signo e discurso. Para o autor, diferentemente da literatura ficcional, a história fingiu ignorar o imaginário e a ideologia do eu narrador na reconstrução da interpretação dos fatos históricos.18
Ainda segundo Barthes, a história deve ser vista, se não como ficção, pelo menos como discurso: "essa narração [a história] difere realmente, por algum traço específico, por uma pertinência indubitável, da narração imaginária, tal como se pode encontrar na epopéia, no romance, no drama?"19, indaga o semiólogo. Seu estudo das características fundadoras do discurso histórico responde que, do ponto de vista da estrutura, ambas as narrativas compartilham de diversas características.
Para Roberto Corrêa dos Santos, a distinção entre história e literatura já não mais se pode dar em função do valor e do privilégio da primeira estar com a verdade pois esta, como já ensinava Foucault, não está localizada em um ponto tal que se possa segurá-la, ela jamais é fixa. Santos ainda afirma que

(...) nessa perspectiva, há a desconfiança sobre a história enquanto campo de uma organização factual, de totalidade empírica, na qual se localizaria a verdade tal qual se acreditou existir, una e reconhecível, apesar de suas encenações várias. O pensar história como literatura situa-se no projeto, também histórico, de se descontruir as garantias e as certezas dos métodos e análise dirigidos pela força da tradição, pela busca da origem, pela concepção de legado, pela credibilidade na influência e na autoria.20

Nesse sentido, estas questões seriam enfrentadas, como em nenhuma outra obra, por Hayden White – Meta-história: a imaginação histórica no século XIX, na qual concentrou-se na análise formalista dos historiadores oitocentistas Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt, bem como dos filósofos da história Marx, Nietzsche e Croce, para elaborar sua tese fundamental: a atividade do historiador seria ao mesmo tempo poética, científica e filosófica, incorporando em sua narrativa argumentativa modelos de análises literários, como ele próprio fez com as obras daqueles pensadores citados, destacando seus enredos (romance, comédia, tragédia e sátira), seus tropos retóricos (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) e relacionando-os a modos de explicação e atitudes políticas.21
No artigo intitulado O texto histórico como artefato literário, White resume bem suas posições, afirmando que

(...) tem havido uma relutância em considerar as narrativas históricas como o que elas mais manifestamente são: ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na literatura que na ciência.22

Mas isto não equivale para ele a tomar a ficção verbal da história como discurso destituído de valor; ao contrário, significa admitir que toda forma de conhecimento contém elementos de imaginação e ficção, que a poesia não é seu elemento oposto.
Também presente em Trópicos do Discurso, talvez o ensaio mais desafiador de White, O fardo da história questiona a concepção científica da história seguindo um insight nietzchiano. De acordo com ele, a dessemelhança radical entre arte e ciência resultou de um mal-entendido promovido pelo medo que o artista romântico tinha da ciência e de um desdém que o cientista positivista votava à arte romântica.23
Argumenta ainda que, por oposição à cultura historicizada ocidental e burguesa, ao pesadelo e ao fardo da consciência histórica na modernidade, as artes atuaram como uma força libertadora ao afirmarem a contemporaneidade de toda experiência humana significativa (a exemplo de Kafka, Proust ou Virginia Woolf).
Conclamando os historiadores a experimentarem destemidamente a visão artística, ainda que isso signifique um mergulho no imprevisível, White conclui:

(...) somente libertando a inteligência humana do senso histórico é que os homens estarão aptos a enfrentar os problemas do presente. As implicações de tudo isso para qualquer historiador que valoriza a visão artística como algo mais que mero divertimento são óbvias: ele tem de perguntar a si próprio de que modo pode participar dessa atividade libertadora, e se a sua participação acarreta forçosamente a destruição da própria história.24

Em seu últimos escritos publicados, White tem assumido um tom menos provocativo, sem contudo abandonar a marca da radicalidade comum em suas teses fundamentais. Um bom exemplo disso é Teoria literária e escrita da história, onde o autor procura sistematizar as principais objeções levantadas pelos críticos à sua obra, tentando responder detidamente a cada uma.
Contra a acusação de destruir a diferença entre fato e ficção, e de assim abrir espaço para toda aventura historiográfica, esclarece que sua teoria apenas redefine as relações entre os dois dentro dos discursos:

(...) se não existem fatos brutos, mas eventos sob diferentes descrições, a factualidade torna-se questão dos protocolos descritivos para transformar eventos em fatos (...) Os eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição lingüística. O modo da linguagem usado para constituir os fatos pode ser formalizado e governado por regras, como nos discursos científicos e tradicionais; pode ser relativamente livre, como em todo discurso literário modernista ou pode ser uma combinação de práticas discursivas formalizadas e livres.25

É interessante ressaltar que grande parte dos autores citados nessa exposição pertencem a uma vertente historiográfica em crescimento nas últimas décadas, a denominada nova história cultural, que, por sua vez, tem identificado a representação como um dos problemas centrais da disciplina, procurando respostas a uma pergunta crucial: como a narrativa histórica representa a realidade?26
Nessa direção, a própria noção de documento, que sustentava a narrativa convencional, foi alvo de inúmeras interrogações, bem como foi realçado o papel ativo do historiador em sua recolha e interpretação, rompendo-se assim a idéia de que cabe a ele o simples registros dos testemunhos.27
Nesse caso, não se trata de substituir a ficção pela história mas de possibilitar uma aproximação poética em que todos os pontos de vista, contraditórios mas convergentes, estejam presentes, formando o que Steenmeijer chamou de representação totalizadora. Assim, a literatura pode ser considerada como uma leitora privilegiada dos acontecimentos históricos.28



________________________________________
1 BACZKO, Bronislaw . Les imaginaires sociaux. Paris: Payot, 1984, p. 27.
2 A categoria teórica mundo real, que estamos utilizando, pode ser compreendida como um sistema de idéias-imagens que dá significado à realidade, participando, assim, da sua existência. Logo, o real é, ao mesmo tempo, concretude e representação. Ver LE GOFF, Jacques. L'histoire etl'imaginaire. Entretien avec Jacques Le Goff. Apud CAZENAVE, Michel. Mythes et histoire. Paris: Albin Michel, 1984, p. 55.
3 MENDONÇA, Wilma Martins de. "Memórias do Cárcere: história sim, literatura também." In: Graphos: revista da Pós-graduação em Letras da UFPB. João Pessoa, n. 02, ano 1, 1995, pp. 123-148.
4 ARISTÓTELES. "Poética". In: Os Pensadores. Trad. Eudoro de Souza. T. IV., São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 443-471.
5 FERREIRA, Antonio Celso. "A narrativa histórica na prosa do mundo". In: Revista Itinerários [Pós-graduação em Letras - UNESP]. Araraquara, n. 15/16, 2000, pp. 133- 140.
6 COSTA LIMA, Luiz. O controle do imaginário: razão e imaginação no ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 31.
7 AQUINO, Ivânia Campigotto. Literatura e história em diálogo: um olhar sobre Canudos. Passo Fundo: UPF, 1999, p. 16.
8 SANTOS, Pedro Brum. Teorias do romance: relações entre ficção e história. Santa Maria: UFSM, 1996, p. 19.
9 No plano das condições concretas da existência, a falência dos regimes socialistas, por um lado, abalou a convicção de que era possível a reconstrução de uma sociedade alternativa ao capitalismo, dada a forma histórica de realização totalitária em que tais regimes haviam descambado. Por outro lado, as próprias economias do Primeiro Mundo não conseguiram resolver as questões sociais internas, aumentando o número de desempregados e sem lar, ao passo que a vigência da liberal democracia não impediu a ascensão da direita no Velho Mundo, com posições que podem ser associadas ao fascismo. E mais, a própria concepção dos Annales de uma "história global" esfacelou-se nessa encruzilhada de incertezas de final de século. Para uma reflexão mais aprofundada desse processo ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. "Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário." In: Revista Brasileira de História: Representações. São Paulo: ANPUH/CONTEXTO, vol. 15, nº 29, 1995, pp. 9-27.
10 STONE, Lawrence. “O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma velha história.” Trad. Denise Bottmann. In: Revista de História. Campinas, 1991, n.º 2, pp. 12-27.
11 GAY, Peter. O estilo da história. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia, das Letras, 1990, pp. 21-29.
12 VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucalt revoluciona a história. Trad. Alda Baltar e Maria A. Kneipp. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, pp. 37-45.
13 SARAMAGO, José. "História e ficção". In: Jornal de Letras, Artes e Idéias. Lisboa: s/e, 1990, pp. 7-19.
14 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Constança M. Cesar. Campinas: Papirus, 1994, p. 15.
15 NUNES, Benedito. "Narrativa histórica e narrativa ficcional." In: RIEDEL, Dirce Cortes (org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1988, p. 9-35.
16 CHALHOUB, Sidney, PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (orgs.). A história contada. Capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 7-32.
17 CHALHOUB, Sidney, PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (orgs.). Op. cit., p. 7.
18 BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 10-27.
19 BARTHES, Roland. Op. cit., p. 145.
20 SANTOS, Roberto Corrêa dos. "História como Literatura." In: Modos de saber, modos de adoecer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, pp.129-135.
21 WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. Trad. José Lourênio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992, pp. 20-31.
22 WHITE, Hayden. "O texto histórico como artefato literário." In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 2001, pp. 97-116.
23 WHITE, Hayden. "O fardo da história." In: Op. cit., pp. 39-64.
24 WHITE, Hayden. Op. cit., p. 52.
25 WHITE, Hayden. "Teoria literária e escrita da história." In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 7, 1994, pp. 21-48.
26 HUNT, L. (org.) A nova história cultural. Trad. Jeffrerson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 39.
27 LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas: UNICAMP, 1990, p. 12. Historiadores estrangeiros renomados têm experimentado práticas narrativas novas, enfatizando a natureza sempre parcial não só dos testemunhos utilizados como também do próprio ato discursivo. Livros como o de Le Roy Ladurie, Carnival in romans; Georges Duby, The legend of Bouvines; Natalie Davies, The return of Martin Guerre; Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes; Simon Schama, Citizens; no exterior, ou brasileiros como Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na metrópole e Emília Viotti da Costa, Coroas de glória, lágrimas de sangue, são exemplos de escritos históricos capazes de problematizar o passado sem submetê-lo às verdades incontestáveis dos escritos unitários.
28 Citado por ESTEVES, Antonio R. “Literatura e história: um diálogo produtivo.” In: Fronteiras do Literário. Niterói: EDUF, 1997, p.65.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

ENTREVISTA COM ROGER CHARTIER

"Não posso aceitar a idéia que está identificada com o pós-modernismo de que todos os discursos são possíveis porque remetem sempre à posição de quem o enuncia e nunca ao objeto", afirma o historiador em entrevista exclusiva.

Encontrei Roger Chartier no hall da Casa de Rui Barbosa no dia anterior a essa entrevista. Ele voltava do almoço com Sandra Pesavento, sua amiga e organizadora do Seminário de História Cultural, do qual estava participando. Sandra já lhe havia falado de mim e dito do meu interesse em conversar com ele, de modo que quando nos vimos de longe ela me acenou. Imediatamente, o professor Chartier veio ao meio encontro com aquele sorriso simpático que é uma de suas características. Pois Roger Chartier, a par de ser uma celebridade do mundo acadêmico, é extremamente simples, afável, quase carioca na maneira natural e bem-humorada de se aproximar das pessoas, de deixá-las à vontade. Marcamos a entrevista para a manhã do dia seguinte (16/09/2004), no Hotel Glória, onde o historiador gosta de se hospedar no Rio de Janeiro.

Sabendo o quanto Chartier tem sido entrevistado por historiadores e jornalistas e seguindo o meu pendor natural para conhecer a vida das pessoas, orientei minhas primeiras perguntas no sentido de conhecer um pouco da biografia do entrevistado. Chartier resistiu bravamente a se tornar ele mesmo objeto de estudo, mas no exercício legítimo desta resistência nos proporciona aqui uma interessante reflexão sobre a questão biográfica.

Entrevistado que facilita o trabalho do entrevistador, pois reage aos temas com clareza, vivacidade e erudição, o que ressalta do discurso de Chartier é o seu permanente interesse pelos temas relacionados ao seu trabalho. A maneira articulada e inteligente como as suas respostas brotam denunciam o intelectual em que trabalho e vida se confundem, tal como na proposição de Wright Mills: "A erudição é uma escolha de como viver e ao mesmo tempo uma escolha de carreira; quer o sabia ou não, o trabalhador intelectual forma seu próprio eu à medida que se aproxima da perfeição de seu ofício".

Diretor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e professor especializado em história das práticas culturais e história da leitura, Roger Chartier é um dos mais conhecidos historiadores da atualidade, com obras publicadas em vários países do mundo. Sua reflexão teórica inovadora abriu novas possibilidades para os estudos em história cultural e estimula a permanente renovação nas maneiras de ler e fazer a história.

Chartier foi professor convidado de numerosas universidades estrangeiras (Princeton, Montreal, Yale, Cornell, John Hopkins, Chicago, Pensilvânia, Berkeley etc) e publicou no Brasil os seguintes livros: “História da vida privada, vol. 3: da Renascença ao Século das Luzes” (Companhia das Letras); “Cultura escrita, literatura e história” (Artmed), “Formas do sentido - Cultura escrita: entre distinção e apropriação” (Mercado de Letras), “Os desafios da escrita” (ed. da Unesp), “A aventura do livro” (Unesp), A beira da falésia” (Editora da Universidade), “Do Palco à Página” (Casa da Palavra), “A ordem dos livros” (UnB), “História da leitura no mundo ocidental” (Ática), Práticas da leitura” (Estação Liberdade), “O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente” (sob a direção de M. Baratin e C. Jacob, Ed. UFRJ) e “Leituras e leitores na França do Antigo Regime” (Unesp).


Quem é Roger Chartier? Como a sua obra se relaciona com a sua história de vida?

Roger Chartier: Tenho sempre uma certa prudência com questões pessoais. Acho que, quando a gente fala de si, constrói algo impossível de ser sincero, uma representação de si para os que vão ler ou para si mesmo. Gostaria de lembrar, a este propósito, o texto de Pierre Bourdieu sobre a ilusão biográfica ou a ilusão autobiográfica. Bourdieu critica este tipo de narrativa em que uma vida é tratada como uma trajetória de coerência, como um fio único, quando sabemos que, na existência de qualquer pessoa, multiplicam-se os azares, as causalidades, as oportunidades.

Outro aspecto da ilusão biográfica ou autobiográfica é pensar que as coisas são muito originais, singulares, pessoais, quando são, na verdade, freqüentemente, experiências coletivas, compartilhadas com as pessoas pertencentes a uma mesma geração. Ao fazer um relato autobiográfico é quase impossível evitar cair nesta dupla ilusão: ou a ilusão da singularidade das pessoas frente às experiências compartilhadas ou a ilusão da coerência perfeita numa trajetória de vida.

Penso que esse tipo de relato só tem sentido quando podemos relacionar um detalhe, algo que seria puramente anedótico, com o mundo social ou acadêmico em que se vive. Pierre Nora lançou a idéia de “ego-história” numa coletânea de ensaios onde estão reunidas oito autobiografias: George Duby, Jacques Le Goff, Pierre Duby, dentre outros. Eram autores conhecidos falando sobre sua trajetória pessoal ou relacionando-a com a escolha de determinado período ou campo histórico. Mas pessoalmente considero muito difícil evitar o anedótico ou o demasiado pessoal nesse tipo de relato. Como pensar em si, objetivando entender seu próprio destino social? Acho que é preciso primeiro situar-se dentro do mundo social e daí fazer um esforço de dissociação da personagem: a personagem que fala e a personagem sobre a qual se fala, que é o mesmo indivíduo.

Isto posto, podemos entrar, com uma certa cautela, na resposta à sua pergunta. Nasci em Lyon e pertenço a um estrato social fora do mundo dos dominantes, sem tradição no meio acadêmico. Minha trajetória escolar e universitária foi conseqüência desta origem. Na França, o traço dominante era a reprodução: o sistema escolar e universitário levava a que os filhos reproduzissem as mesmas posições sociais dos pais. Pierre Bordieu e Jean Claude Passeron trataram desse tema em dois livros. O primeiro, publicado em 1964, chamava-se “Os herdeiros” e o segundo, de 1970, “A reprodução”.

Naturalmente que há espaço para que as pessoas que vêm de outro horizonte social possam driblar essa tendência. A minha própria trajetória pertence a esta exceção. Para entendê-la é preciso um certo conhecimento da realidade social do pós-guerra na França, entre os anos 1950 e 60, quando predominava o sistema de reprodução, mas onde havia também alguma possibilidade de ascensão para gente de outra origem social. Acho, no entanto, que quando há este tipo de tensão entre uma forma dominante de escola e uma individualidade de origem diferente que consegue furar este sistema sempre se mantém algo dessa tensão, dessa dificuldade.


O historiador inglês, Richard Hoggart, em seu livro “The uses of literacy”, reflete sobre a sua própria trajetória de estudante bolsista oriundo de uma família de operários. Esta filiação ao lugar de origem, essa relação entre a autobiografia e objeto de estudo, foi extremamente proveitosa no caso de Hoggart, não lhe parece?

Chartier: Traduzido para o francês como “La culture du pauvre”, o livro de Hoggart é realmente maravilhoso, pois consegue articular elementos biográficos com uma reflexão profunda sobre a mídia voltada para as classes populares, neste caso a classe operária inglesa dos anos 1940 e 50. O principal propósito desse livro é questionar a idéia segundo a qual todos os leitores ou ouvintes das produções dessa indústria cultural acreditavam piamente em suas mensagens. Viveriam sob uma forma de alienação, submetidos aos modelos sociais que as mensagens dos “mass media” do tempo -rádio, cinema e revistas- impunham.

Hoggart queria mostrar que havia uma relação muito mais complexa, ambivalente, entre crer e não crer, aceitar a ficção e, ao mesmo tempo, ter a consciência de que se trata de um mundo irreal, um mundo de fábula, de ficção. A oposição entre nós e os outros era um elemento muito claro no livro de Hoggart, e a maneira como estabelece a relação entre história pessoal e discussão sociológica me parece muito justa e adequada.

Em Lyon, no entanto, não éramos uma classe operária no mesmo sentido de Hoggart. Vivíamos num mundo de artesãos que trabalhavam de uma maneira ou de outra na atividade dominante da cidade que é a seda. Havia algo como o que descreve Hoggart na relação com os horóscopos, com os diários de grande tiragem e as canções. Mas não havia apenas a circulação dos produtos culturais que descreve Hoggart, havia também um certo gosto por uma parte da cultura dominante. A ópera, por exemplo, era muito popular.

Na Lyon da minha infância ia-se à ópera como se ia ao cinema, duas, três vezes por semana. Era uma apropriação muito popular não de todo o repertório da ópera, mas principalmente da ópera italiana, de Verdi, dos franceses. Meu pai viu “Carmen” 25 vezes. Essa relação mudou entre os anos 1960 e 1970, quando este mundo dos artesãos foi gradativamente desaparecendo e, em seu lugar, surgiu uma fratura mais profunda entre o mundo dos que vão à ópera e o dos que gostam de outra forma de diversão.


Um aspecto que me pareceu interessante no livro de Hoggart é a importância que a literatura teve para a sua formação. Imagino que na França, onde a tradição literária é tão forte, uma formação baseada nessas leituras de mocidade deve influir na possibilidade de romper com o sistema da reprodução. Você não acha?

Chartier: De fato, na França, a literatura tinha muita importância na escola. Principalmente porque o currículo da escola primária utilizava para diversos exercícios pedagógicos fragmentos dos clássicos, de Victor Hugo, dos novelistas do século 19, como Alphonse Daudet. Dessa maneira, como a escola é obrigatória, cada um, até a idade de 14 anos, inclusive a gente das camadas mais populares, tinha uma relação direta, ainda que fragmentária, com esse corpus literário que define a literatura francesa.

Para os alunos dos liceus, havia também todo o repertório da literatura clássica do século 17: Corneille, Molière, Racine. Havia uma impregnação muito forte daquilo que, numa definição canônica, chamam de literatura. Não sei se isso ainda é assim hoje em dia, porque a escola primária ou secundária se desprendeu um pouco desse corpus canônico de textos e se abriu a autores contemporâneos.

A mídia também mudou muito. Recordo que nos anos 1960 havia somente uma rede de televisão que saía do ar às oito e meia da noite e onde se lia Corneille. Apresentar numa rede pública, com uma programação única para todos, às oito e meia, um texto clássico, é algo impensável hoje. Salvo nos canais particulares destinados a um certo público.

O mundo mudou profundamente no final dos anos 1960. 1968 foi um marco da ruptura cultural, não necessariamente no sentido que usualmente se pensa: de uma abertura, da quebra da autoridade, de formas mais abertas de comportamento. Mas o que também houve a partir de 68 foi o agravamento desse espírito de comercialização, com a destruição da dimensão cultural, por exemplo, da televisão.

Destruição no sentido de que não há apenas a possibilidade compartilhada por toda a gente de ver ou desligar a televisão. Agora há uma fragmentação infinita, há os canais para os que gostam de pop, para os que gostam de rock, da música clássica. É uma forma de fragmentação cultural que também se pode ver como uma forma de liberdade e de diversificação. Mas ao mesmo tempo, 68 marca também o desaparecimento de uma cultura compartilhada e arraigada numa referência como a literatura nacional e universal.

A minha geração foi, no Brasil, talvez a última em que a leitura dos clássicos da literatura universal era um hábito. Acho que isso criou um universo de referência para a nossa geração que é diferente dos jovens de hoje. De que maneira esse universo de referências culturais originadas da leitura dos clássicos está na base da visão de mundo do historiador de hoje em dia? Por outro lado, de que maneira esse universo de referência cultural mais ampliado contribuiu para a aceitação de abordagens interdisciplinares?

Chartier: Não devemos pensar que o passado era necessariamente melhor. Há autores que se especializaram nesse tipo de diagnóstico pessimista. Acho, ao contrário, que hoje se lê mais do que nos anos 1950. Inclusive porque o computador não é apenas um novo veículo para imagens ou jogos. Ele é responsável também pela multiplicação da presença do escritor nas sociedades contemporâneas. No computador tanto se pode lê os clássicos como publicações acadêmicas e revistas em geral. Podem não ser necessariamente leituras fundamentais, enriquecedoras, mas são leituras.

Não se pode dizer, portanto, que estejamos assistindo ao desaparecimento da cultura escrita. O problema é qual cultura escrita persiste. É difícil entender a articulação sempre instável entre as novas formas culturais, as novas preferências dos jovens e o que se mantém como uma referência fundamental. O fato de que os textos lidos pelos adolescentes no computador, suas leituras prediletas, não pertençam àquele repertório definido como literário não é necessariamente algo ruim. O problema está numa certa discrepância entre essa nova cultura e os modelos de referência que, a nosso ver, seriam mais consistentes e forneceriam mais recursos para a compreensão do mundo social, a compreensão de si mesmo e a representação do outro.

Para isto não tenho resposta, mas me parece que há duas posições que se deve evitar. Uma é a que considera que essa presença da literatura na realidade cotidiana pertence a um mundo definitivamente desaparecido. Não me parece um diagnóstico adequado, pois há, na atualidade, um esforço dentro da escola e fora da escola para preservar a cultura literária. O que torna difícil identificar esse esforço é que, se antes ele era evidente e se concentrava em algumas atividades, hoje ele se diversifica através, por exemplo, dos novos e variados meios de comunicação.

A outra posição é a dos que pensam que não há nada de proveitoso, útil ou fundamental nesse novo mundo. Postura que me parece muito inadequada quando pensamos nas possibilidades educativas criadas pelas novas tecnologias, nas diversas experiências para a alfabetização, para a transmissão do saber à distância.

Acho que é responsabilidade dos intelectuais, dos meios de comunicação, dos editores, assegurar a transmissão de um saber sobre o mundo, através de projetos que vinculem a dimensão estética ou a dimensão científica com a existência cotidiana. Para que as pessoas não sejam totalmente submetidas às leis do mercado, à incerteza ou à inquietude, o essencial é dar a cada um instrumentos que lhe permita decifrar o mundo em que vive e a sua própria situação neste mundo. Esse saber que pode vir da sociologia, da literatura, da história, possibilitaria a resistência às imposições dominantes que vêm de todas as partes: dos discursos ideológicos, das mensagens dos veículos de comunicação, da cultura de massa etc.

O que Hoggart descrevia em seu maravilhoso livro era a maneira como também podemos nos plasmar, nos construir através do conhecimento. Trata-se de uma experiência densa e forte que se pode obter através dos textos literários, do presente ou do passado, uma perspectiva que envolve tanto a transmissão da beleza, mas também uma dimensão crítica. Mas me parece que, se há um caminho não literário para se adquirir saber sobre o mundo social, por que procurar os instrumentos mais vulneráveis para decifrar esse mundo?


Apesar da valorização teórica que a moderna historiografia tem promovido da narrativa sempre vejo os historiadores a trabalharem ainda com um certo pudor, acompanhando cada fato narrado de uma análise minuciosa daquele aspecto ou então recorrendo ao chamado argumento de autoridade. Parece-me que isso prejudica o resultado do ponto de vista da narrativa, pois, em geral, a torna fragmentada e desinteressante. O que você acha?

Chartier: Entre os anos 1950 e 60, os historiadores buscavam uma forma de saber controlado, apoiado sobre técnicas de investigação, de medidas estatísticas, conceitos teóricos etc. Acreditavam que o saber inerente à história devia se sobrepor à narrativa, pois achavam que o mundo da narrativa era o mundo da ficção, do imaginário, da fábula. Desta perspectiva os historiadores rechaçaram a narrativa e desprezaram os historiadores profissionais que seguiam escrevendo biografias, história factual e tudo isso. A tradição francesa dos Annales foi uma das que levou mais longe essa tendência.

Hoje, no entanto, a situação tornou-se muito mais complicada. Uma das razões é que autores como Hayden White e Paul Ricoeur mostraram que, mesmo quando os historiadores utilizam estatísticas ou qualquer outro método estruturalista, produzem uma narrativa. Quer dizer: quando dizem que tal coisa é conseqüência ou causa de outra, estabelecem uma ordem seqüencial, se valem de uma concepção da temporalidade, que é a mesma de uma novela e de um relato historiográfico.

Ao mesmo tempo, entidades abstratas, como classes, valores e conceitos, atuam no discurso dos historiadores quase como personagens, havendo toda uma forma de personificação das entidades coletivas ou abstratas. Dessa forma o historiador não pode evitar a narração, inclusive quando a rechaça conscientemente. Pois a escrita da história por si mesma, pela maneira de articular dos eventos, pela utilização da noção de causalidade, trabalharia sempre com as mesmas estruturas e com as mesmas figuras de uma narrativa de ficção.

É a partir desse parentesco entre a narrativa de ficção e a narrativa histórica que se coloca a questão: onde está a diferença? Alguns críticos pós-modernos adotaram um relativismo radical e decidiram que não havia diferença e que a história era ficcional não apenas no sentido da forma. Ou seja: não diziam que não há verdade na história, mas que a verdade do saber histórico era absolutamente semelhante à verdade de uma novela.

Outros historiadores, dentre os quais eu me insiro, acreditam que há algo específico no discurso histórico, pois este é construído a partir de técnicas específicas. Pode ser uma história de eventos políticos ou a descrição de uma sociedade ou uma prática de história cultural, para produzi-la o historiador deve ler os documentos, organizar suas fontes, manejar técnicas de análise, utilizar critérios de prova. Coisas com as quais um novelista não deve se preocupar.

Portanto, se é preciso adotar essas técnicas em particular, é porque há uma intenção diferente no fazer história: que é restabelecer a verdade entre o relato e o que é o objeto deste relato. O historiador hoje precisa achar uma forma de atender a essa exigência de cientificidade que supõe o aprendizado da técnica, a busca de provas particulares, sabendo que seja qual for a sua forma de escrita esta pertencerá sempre à categoria dos relatos, da narrativa.

Alguns historiadores decidiram então que não valia à pena lutar contra algo inevitável e passaram a utilizar-se dos recursos mais persuasivos da narrativa a serviço de uma demonstração histórica. Adotaram formas de narrativa que permitiam assegurar, digamos assim, a mise-en-scène da prova. Historiadores como Carlo Ginzburg utilizam técnicas de narração que são até mesmo mais cinematográficas do que propriamente novelescas. Outros entrecruzam diversas histórias de vida.

Acho que a situação atual não é a de uma oposição absoluta entre a narrativa como ficção e a história como saber, mas de um saber que se escreve através da narrativa e daí ser necessária uma reflexão sobre que tipo de narrativa adotar. Uma narrativa onde se respeite o discurso do saber, mas que, ao mesmo tempo, seja atrativa para um público de leitores. Não é uma tarefa fácil, mas há exemplos que demonstram que pode ser feito.

Talvez aqui se possa colocar também a questão do talento do narrador. Alguns livros de história, como os de Robert Darnton, Nathalie Zemon Davies e Michel Volvelle, são bem escritos, agradáveis de ler...

Chartier: É uma questão de talento, sim, mas também do campo de investigação. Penso que há formas de saber nas ciências humanas e sociais que são absolutamente fundamentais, mas que não podem se apresentar através de maneiras tão sedutoras ou mesmo que não pretendem necessariamente encontrar um grande público.

Se alguém trabalha, por exemplo, sobre técnicas arqueológicas na Mesopotâmia antiga ou sobre algum tema da história econômica mais difícil, evidentemente os critérios de cientificidade exigidos para a realização do trabalho o afastam de um formato mais sedutor e fácil para os leitores. Se alguém trabalha, por exemplo, sobre a filologia grega, estabelecendo o texto de uma tragédia de Sófocles, é uma contribuição fundamental para o conhecimento, mas não vamos pensar que vá vender 100 mil exemplares.

Digo isso porque me parece que na França, particularmente, após o sucesso de livros como o “Montaillou”, de Le Roy Ladurie, fixou-se a idéia de que toda a obra de história deveria necessariamente atrair um grande público. A partir daí as editoras passaram a privilegiar os livros que tratavam de temas que estivessem na moda, adotando uma atitude de desprezo para com trabalhos mais modestos ou difíceis.

Por um lado é muito bom pensar que o historiador não deve permanecer em sua torre de marfim, que assim está fazendo algo útil ao fornecer um instrumento crítico ao público para pensar seu passado coletivo e seu mundo contemporâneo. Mas isto se torna perigoso quando a busca pelo êxito afasta o historiador dos objetos ou critérios próprios da prática científica.

O importante é estabelecer formas de mediação. Atualmente, junto com Michèlle Perrot e Jacques Le Goff, ocupo-me de um programa de rádio em Paris, “Les matins de France culture”, onde discutimos livros que dificilmente podem encontrar um grande público. Mas, se há a mediação, o público pode ter idéia do progresso do saber. Isso é um exemplo do que considero uma forma mediatizada de conhecimento.


Há algum tempo fiz a resenha de um livro de ensaios do antropólogo James Clifford. Tive uma certa sensação de desconforto diante de leitura pós-moderna e desconstrutivista que ele faz da tradição etnográfica. A etnografia foi um instrumento criado pela cultura ocidental para entender pessoas de outras culturas, não significando que aquelas pessoas tivessem a mesma ânsia de nos entender ou de entenderem a si mesmas, ou, ainda, que achassem que a etnografia seria a ferramenta adequada para isto. Cada cultura tem os seus próprios meios de se relacionar com o mundo. A meu ver, sempre se parte de uma base histórica, ideológica ou cultural para fazer alguma coisa, para pensar ou para agir. O pós-modernismo foi um exercício de desconstrução da cultura ocidental, e nossa base é o universo de informações que compõem a cultura ocidental. Ela é que nos fornece os instrumentos e a motivação para pensarmos sobre nós e sobre o mundo. E até para fazer a crítica dessa maneira de pensar.

Chartier: Penso que, em certo sentido, o trabalho de James Clifford está em paralelo ao de Hayden White. Acho que é algo legitimo fazer historiadores e antropólogos refletirem sobre a própria escrita. Durante muito tempo a escrita foi vista como um meio neutro para falar sobre o passado ou para descrever o outro. Daí ter sido fundamental fazer dela um objeto de reflexão, tal como fez White, ao pensar sobre o papel, na escrita do historiador, de elementos como a retórica e as figuras que se manejam para escrever sobre o passado. O mesmo fez James Clifford com relação aos dispositivos que os antropólogos utilizam em seu trabalho.

Outra contribuição fundamental dessa corrente foi a idéia de que há uma descontinuidade necessária entre o presente e o passado, ou entre o antropólogo e o outro, a qual não pode ser anulada pela idéia de universalidade e de compreensão de si próprio. Tal concepção se apóia sobre o conceito de descontinuidade de Foucault, que demonstrou que existe ruptura em conceitos como de loucura, medicina, clínica e sexualidade. Essa atitude proporciona uma consciência dos limites da utilização de técnicas de investigação ou de observação. Supõe também uma forma de ética na investigação, no encontro com o outro, do passado ou de hoje.

Mas tanto no texto de White quanto no de Clifford há um relativismo absoluto. Não posso aceitar a idéia que está identificada com o pós-modernismo de que todos os discursos são possíveis porque remetem sempre à posição de quem o enuncia e nunca ao objeto. De acordo com essa visão, o discurso é sempre autoproduzido: não diz nada sobre o objeto e diz tudo sobre quem o escreveu.

Parece-me uma conclusão equivocada, a partir de premissas interessantes, porque, tanto no caso da história quanto no da antropologia, uma produção de saber é possível e necessária. É também uma perspectiva que se vale dos argumentos do politicamente correto, assumindo-se como a forma de respeitar o outro, aquele que está absolutamente desconhecido, conservando-lhe a identidade própria.

Esta justaposição de situações históricas ou situações antropológicas onde não existe nenhuma comunicação, nenhum intercâmbio, nem sequer de saberes, parece uma forma terrivelmente reducionista daquilo que poderia ser um projeto de conhecimento compartilhado. Razão pela qual estou completamente em desacordo com essa postura pós-moderna, essa idéia de que não há nenhuma possibilidade de conhecimento.

É diferente dizer que esse conhecimento sempre esteve organizado a partir dos esquemas de percepção, de classificação e compreensão do observador. E que, se existem formas de descontinuidade culturais, é preciso, assim mesmo, fazer um esforço para entender o passado e o outro. Pois foi a partir dessa dupla perspectiva que se construiu um saber, e me parece que os trabalhos fundamentais da história e da antropologia demonstram que este saber não só é possível como também pode ser oferecido ao outro para conhecimento de si mesmo -para fazer com que o objeto do saber possa transformar-se em seu próprio manufator, não dependendo apenas do conhecimento produzido pelo antropólogo ou historiador.

Parece-me que, assim, temos a circulação da força crítica do saber. Se isso for destruído, cai-se num relativismo absoluto. O que me parece seria uma conclusão trágica e ao mesmo tempo muito ideológica.


Neste momento temos a sensação de que tudo se tornou possível: práticas que haviam sido banidas por um conjunto de acordos internacionais no pós-guerra vêm sendo implementadas pelos EUA na guerra no Iraque ou ao manterem pessoas presas sem julgamento em Guantânamo. Ao mesmo tempo, ocorre a perda de força de organismos internacionais, como a ONU. Na medida em que sabemos que as grandes idéias são filtradas e incorporadas à agenda do senso comum, a perspectiva radicalmente relativista do pós-moderno não teria influído de alguma forma nesse tipo de política, esvaziando a confiança em algumas conquistas do humanismo e da cultura do Ocidente?

Chartier: O maior paradoxo do pós-modernismo é que nasce de uma perspectiva crítica das autoridades, das hierarquias e dos elementos dominantes, mas, com a introdução da dimensão epistemológica do relativismo, a análise fica sem nenhum recurso para fundamentar esta postura crítica. Pois, se tudo é possível, todos os discursos podem ser diferentes por sua competência retórica, por sua arte de expressão, mas em termos de saber e como instrumento crítico não há diferença entre eles. Cria-se uma tensão fundamental.

Hayden White, por exemplo, é um humanista que compartilha os valores morais do humanismo. Mas a aplicação de sua perspectiva não dá à história instrumentos para produzir um conhecimento crítico, desmentir as falsificações e estabelecer um saber verdadeiro. Porque, se não há nenhum critério para estabelecer diferenças entre os discursos dos historiadores, torna-se muito difícil criticar os discursos enganosos, as falsificações e as tentativas de reescrita do passado. Este é, me parece, o grande limite do pós-modernismo: a contradição entre sua intenção e a sua epistemologia.


Em seu livro “O grande massacre dos gatos”, Robert Darnton adota as idéias e os métodos de Clifford Gertz, dando tratamento etnográfico a um objeto de estudo histórico. Esse foco ampliado sobre um detalhe me parece produzir uma visão distorcida do objeto. De que forma você vê esse tipo de investigação?

Chartier: Houve um grande debate depois da publicação do livro de Darnton. Uma das críticas mais fortes feitas a ele tem a ver com a sua identificação com as idéias de Geertz e de sua tendência à textualização das estruturas, das práticas rituais e de toda a cultura. O ponto de partida de Darnton, utilizando a idéia de Geertz de que um rito pode ser lido como um texto, era que se podia pensar as práticas sociais como se fossem textos.

Em “O grande massacre dos gatos” as fontes de que Darnton se vale são, sobretudo, textuais. Os historiadores que trabalham com textos desenvolvem, em primeiro lugar, uma análise crítica do texto. No entanto, Darnton quase não avança nessa direção. Para tratar o rito como texto há como que uma supressão do texto em que o rito está narrado. Quando se analisa meticulosamente aquele trabalho surge um problema: não se pode dizer se a matança é imaginária ou real, se teria ocorrido realmente. Ele menciona o texto de um artesão, mas não lhe dá maior importância, porque pretende se colocar imediatamente na situação de um espectador do massacre. Como Geertz em Bali.

Não podemos pensar que há uma identidade necessária entre a lógica propriamente textual e as estratégias das práticas. Foucault estudou em seus livros a tensão entre as séries discursivas e os sistemas não-discursivos. Michel de Certeau plasmou isto na tensão entre as estratégias discursivas e as táticas de apropriação. Bourdieu refletiu sobre as razões escolásticas e o sentido prático. Nesses três casos de vocabulários teóricos diferentes o que há em comum é a diferenciação entre a lógica da produção textual ou da decifração de um texto utilizando as escritas e as práticas ou estratégias de outras formas de construção, que são as práticas cotidianas, habituais etc.

Isto está em oposição à idéia de Geertz que parece querer ver todas as práticas do mundo social como se fossem textos decifráveis. O mais complicado para o historiador é que essas práticas não-textuais, em geral, se encontram através de textos. O desafio fundamental para o historiador é entender a relação entre os textos disponíveis e as práticas que estes textos proíbem, prescrevem, condenam, representam, designam, criticam etc. O essencial é pensar a irredutibilidade entre a lógica da prática e a lógica do discurso que, tal como dizia Bourdieu, não se podem confundir.

As práticas do passado são acessíveis a nós, em geral, através de textos escritos. E o historiador escreve sobre essas práticas. Ao descrevê-las o historiador tem que ter claro que a operação da escrita não cria uma forma de relação particular com essas práticas, que se tornaram conhecíveis através de sua mediação. O desafio fundamental é pensar conceitual e metodologicamente a articulação e a distância entre as práticas e os discursos e evitar a repetição daquele momento, entre os anos 1950-60, em que a metáfora do texto se aplicava a tudo: aos ritos, à sociedade etc. Era muito cômodo.


Então qualquer documento que não seja escrito, que não seja texto, coloca para o historiador esse tipo de problema. Tal é o caso dos que trabalham com imagens -objeto que não é possível enfrentar através de métodos ou regras muito esquemáticos, não lhe parece?

Chartier: A imagem é um exemplo magnífico para pensar o que dissemos, pois não é uma prática disseminada, é silenciosa, não é sequer um texto. Creio que querer analisá-la como texto é uma perspectiva teoricamente equivocada, porque a lógica de construção da imagem ou de decifração da imagem não é a mesma do texto. Parece-me que a lógica gráfica e a lógica textual não se identificam.

A lógica textual é necessariamente uma lógica linear, a escrita se descreve através de ordem seqüencial. E a leitura, inclusive quando se vai de um fragmento a outro, é uma leitura seqüencial. A observação de um quadro não está organizada segundo esta ordem seqüencial. É algo com uma lógica própria e que não se identifica com a lógica textual. Há uma questão de diferentes planos, de diferentes entradas.

Para restituir a lógica na decifração da imagem, o historiador necessariamente deve manejar a ordem seqüencial ou linear da escrita. O resultado desse esforço é uma tensão. O que não significa ser essa uma tarefa impossível, mas que é preciso estar consciente de suas dificuldades. Meu amigo Louis Marin, cuja obra admiro, construiu uma argumentação a propósito de como fazer textos com imagens. Ele cita como exemplo “Os salões”, artigo em que Diderot transforma um quadro em texto para criticá-lo. E toda a crítica estética supõe essa operação de fazer textos com imagens.

O contrário disto, fazer imagens a partir de textos, é o princípio de toda a iconografia cristã. Textos se transformam em imagens, e vice-versa, mas nunca são idênticos entre si, pois há toda uma série de interpretações, mediações, apropriações. É possível utilizar a metáfora da imagem como texto, ou da observação como leitura. Porém deve-se ter consciência de que é apenas uma forma de falar, que não há uma adequação lógico-teórica entre os dois documentos e que nunca se dissolve a irredutibilidade da diferença.

Uma demonstração perfeita desta irredutibilidade verificou-se quando alguns poetas tentaram romper com essa lógica linear e seqüencial e apresentaram o texto escrito como se fosse um grafismo, com uma forma em que se podia entrar no texto de maneira diversa, sem a imposição da ordem linear da escrita. Foi um esforço para fazer com que a escrita fosse mais identificada pela sua forma gráfica do que por seu conteúdo semântico. A meu ver as questões relativas a imagens estarão sempre trafegando entre o espaço que vai da crítica textual à crítica estética.


Uma outra questão é a do estilo, da retórica no texto de história. Por exemplo, o tratamento irônico do problema, tal como você identificou em Hayden White.

Chartier: Quando Hayden White descreve as quatro figuras retóricas que seriam sempre utilizadas pelos historiadores, inclui, ao lado da metáfora, da sinédoque e da metonímia, a ironia como uma forma de escrita histórica que se pode utilizar inclusive para temas que não tem a ironia como objeto. Não conheço muitos historiadores que tenham empregado esse recurso para escrever textos de história, talvez por causa da tensão que o uso da ironia provoca no texto.

Creio que fazer rir era a idéia de Darnton em “O grande massacre dos gatos”, ao divulgar o texto sobre aqueles artesãos para os quais era muito divertido matar gatos. Em todas essas obras verificamos que estamos diante de uma descontinuidade. Os dispositivos, os temas, as formas, os gêneros que, em um dado momento, provocam o riso ou o sorriso são historicamente definidos.

Ao mesmo tempo, se podemos entender porque esse fato fazia rir à gente do Renascimento é porque há continuidade suficiente para que os outros aspectos sejam percebidos, entendidos e compreendidos. E o que mais temos discutido com o pós-modernismo é sobre a necessidade de reconhecer as descontinuidades históricas sem cair no relativismo que estabelece que não há relação possível através de uma distância profunda e que assim é impossível qualquer compreensão do outro.


Ultimamente, aqui no Brasil, têm circulado na internet textos falsamente atribuídos a escritores e jornalistas célebres. São textos que têm uma certa identidade com o estilo do suposto autor, mas que são renegados com indignação. Já houve também casos de textos atribuídos a Jorge Luís Borges e a Gabriel García Márquez, que, depois de muito terem rodado na rede, os especialistas negaram ser deles. Que outros problemas para a questão da autoria a internet provoca?

Chartier: Trata-se de uma atitude inversa à do plágio, que é roubar um trabalho e assiná-lo, enquanto aqui se rouba o nome de alguém para por no seu próprio texto. Mas este não é um fenômeno diretamente vinculado à internet. Esta apenas modificou a forma de circulação dessas falsificações.

Lope de Vega, por exemplo, em pleno século 16, se queixava que outros dramaturgos utilizavam seu nome para vender comédias muito ruins que ele nunca havia escrito. Para se proteger, ele divulgou uma lista com todas as suas obras, que eram muitas, cerca de 450, pois ele era muito prolífico.

No mundo da imprensa e da representação teatral essa apropriação do nome pode ter diversos fins, no caso de Vega servia para vender as comédias. Pode também servir para pensar em si mesmo como capaz de escrever um texto de Borges. No caso de Borges, parece um fenômeno bem-vindo, uma vez que ele escreveu muitas obras assinadas com nomes que não eram o seu, como se tivessem sido escritas no século 18.

O copyright se baseia na idéia de que o texto é uma criação, uma parte do indivíduo, expressão de seus sentimentos, de sua linguagem. A relação entre o texto e a subjetividade, a idéia de que o texto é uma projeção do indivíduo tendo como conseqüência econômica a propriedade do texto surge a partir da metade do século 18. O problema da circulação textual em forma eletrônica, quando não há formas de se fechar o texto, é que ela criou dificuldades para os direitos de propriedade literária. Cada texto pode ser alterado pelo leitor e enviado pela internet. Essa maleabilidade do texto na forma eletrônica tornou difícil proteger o direito de propriedade literária.

Foucault apresentou na sua conferência inaugural do Collège de France a idéia de um mundo textual sem apropriações, sem nome, feito de ondas textuais que se sucediam, onde cada um poderia escrever suas palavras em um discurso já existente. Era um paradoxo, porque ele apresentava seu sonho de uma textualidade coletiva, indefinida, a partir da posição mais individualizada, a mais prestigiosa da universidade francesa. De certa forma a internet permite aos autores que realizem esse sonho à medida que deixa o texto aberto às escritas, apropriações e alterações. Mas há aqueles fiéis ao século 18 que reivindicam a propriedade literária e a identidade da autoria.

Um tema que vem sendo discutido nos EUA é a forma de impedir que o texto seja transformado, copiado ou impresso. Trata-se de uma questão complicada porque a única maneira de solucioná-la é fechando os textos. E isto é um paradoxo, pois a invenção da internet deu-se justamente para facilitar o acesso aos textos.

Este foi o problema dos e-books, um texto pelo qual se pagava, mas que não se podia alterar, copiar ou imprimir. Protegia os direitos do editor ou do autor, mas não fez sucesso porque o que torna essa nova tecnologia textual tão atraente é justamente a liberdade, a mobilidade. Todas as invenções que vêm no sentido de constranger essa liberdade são consideradas violências contra as novas tecnologias.

A mesma discussão acontece no meio das publicações científicas. Há revistas eletrônicas que querem proibir o acesso gratuito e a possibilidade de cópia dos artigos publicados. E há comunidades investigadoras que afirmam, à maneira de Condorcet no século 18, que o saber é algo que não pode ser apropriado, pois é útil para o progresso da humanidade.

Algumas comunidades investigadoras na área de biologia, por exemplo, tentam criar uma forma de difusão dos resultados fora do controle econômico das revistas, cuja assinatura pode chegar a US$ 8 mil ou mesmo a US$ 12 mil. É uma questão que ainda está para ser resolvida: a internet como uma textualidade livre e móvel ou como forma de publicação segundo os mesmos critérios jurídicos e estéticos da publicação impressa.


Um controle difícil de obter, pois a indústria fonográfica está perdendo essa guerra…

Chartier: Mas a diferença é que a estrutura do livro impresso impõe o texto ao leitor sem que ele possa modificá-lo. Mesmo que se escreva nas páginas em branco, há o reconhecimento da autoria e que isto implica em direitos econômicos e morais. Mas o texto eletrônico é um texto aberto, no qual é possível interferir. É uma grande diferença.

A outra grande diferença é que no mundo do texto impresso há uma correspondência entre o tipo de publicação e o tipo de textos que se publica nela. Uma revista não é um jornal, que não é um livro, que não é um documento oficial, que não é uma carta. Há uma hierarquia de objetos que correspondem a uma diferenciação na taxonomia do texto. O computador quebra isso.

A partir do momento em que o mesmo aparato, na mesma forma, dá a ler todos os tipos de discursos em termos de gênero, da carta ao livro, ou em termos de autoridade, é mais difícil para o leitor que não está preparado fazer a diferenciação imediata -que está muito mais evidente no material impresso.

Uma vez que todos os gêneros de textos, desde os mais íntimos aos mais públicos, se dão a ler de uma forma quase idêntica sobre o mesmo aparato, há uma ruptura muito grande na maneira de entrar ou de conceber ou de manejar o mundo dos textos. Para o melhor ou para o pior.

Para o melhor, porque permite esta proximidade entre os textos, porque há uma circulação textual que não é simplesmente a mobilidade de cada texto separadamente, senão a mobilidade textual, que seria uma forma de invenção e renovação. Para o pior, quando pensamos nos que negam a existência das câmaras de gás.

Se alguém busca informações sobre o Holocausto no mundo da cultura impressa ou se, ao fazer um trabalho para a escola, consulta enciclopédias, livros de história, revistas reconhecidas, não terá tanto contato com a propaganda dos negacionistas, que é totalmente marginalizada. Em muitos países ela está proibida ou só existe em revistas que não se encontram facilmente. Assim, as informações sobre o Holocausto serão obtidas em textos mais ou menos controlados.

Um jornalista fez a mesma investigação sobre o Holocausto na internet e encontrou uma enorme quantidade da propaganda negacionista, revisionista, apresentada com todas a aparência de texto científico. Se o leitor não está preparado para estabelecer a diferença que já foi estabelecida na cultura impressa por meio do formato editorial ou das comunidades cientificas, há um risco de confusão entre o que é informação e o que é saber. É informação conhecer toda essa propaganda revisionista, mas não é saber. É o contrário do saber, é a falsificação da verdade.


A grande dificuldade é como controlar, como estabelecer critérios para isto. Quem vai estabelecer?

Chartier: Voltamos ao nosso primeiro tema de discussão. Não se trata de censura, mas de como reconhecer a autoridade científica. Não autoridade no sentido canônico, e sim a autoridade que se afirma através da evidência, da prova. Os textos que descrevem uma realidade histórica não têm autoridade científica equivalente. É através disto que podemos reconhecer a diferença entre um texto dos revisionistas que inventaram que as câmaras de gás nunca existiram, que nunca aconteceu o massacre de milhões de judeus, e um texto de um historiador que se pode encontrar em uma enciclopédia, em livros de divulgação e que estabeleceu uma percepção adequada do acontecimento.

O que digo é que este diferencial de credibilidade científica era estabelecido no mundo impresso a partir das diferenciações editoriais entre os tipos de publicações e as formas do discurso. A gente podia dar mais crédito a um livro publicado por uma editora reconhecida por sua exigência que a um artigo de periódico ou a uma carta privada. Essa operação não é impossível com o texto eletrônico. Ela se tornou mais difícil.


Talvez porque credibilidade é uma coisa que se conquista com o tempo. É como o prestígio de algumas universidades e o descrédito de outras. Dentro da internet ainda não houve tempo para criar portais em que o usuário possa dizer com toda convicção: neste eu posso confiar.

Chartier: De fato, é preciso dar aos usuários da internet instrumentos críticos para entender como os textos foram construídos, para avaliar o grau de seriedade de cada local. Não podemos minimizar o significado da ruptura de um mundo onde objetos e textos estão vinculados através de materialidades múltiplas com um mundo em que a mesma superfície iluminada do monitor dá a ler todos os gêneros textuais. A reflexão sobre essas transformações muda a percepção dos textos e de suas diferenças.

Há uma descontinuidade com a leitura com que estávamos familiarizados e isto implica na transformação da relação fundamental com algo que continua a ser um texto, mesmo que em diferentes formas. A leitura eletrônica é uma leitura da fragmentação, dos extratos de livro, sem que se saiba nada sobre a totalidade da qual se extraiu aquele fragmento, pois o fragmento eletrônico não mantém nenhuma ligação com o texto que garantia o conhecimento da totalidade. O problema é saber se a internet pode superar a tendência à fragmentação.


Você já orientou muitos brasileiros. Ao longo desse tempo você leu muito sobre o Brasil nas teses desses orientandos. A partir dessas leituras como você vê o Brasil?

Chartier: Acho que há aqui uma circulação entre os campos disciplinares da antropologia, da história e da sociologia cultural mais forte que em outros lugares. O campo da educação, por exemplo, que em muitos países é muito especializado, aqui me parece estar bastante integrado ao mundo das ciências sociais. A maior parte dos trabalhos que orientei tratam de uma forma ou de outra do mundo das práticas culturais, da história da publicação e da circulação dos textos e um pouco também do mundo social, da história da vida privada, das estruturas sociais do Brasil colônia.

Há uma vitalidade impressionante nesse tipo de investigação. O problema é que na Europa ou nos Estados Unidos existe uma total falta de interesse por outros territórios. Todo mundo está muito preso a seu próprio campo de investigação e não se dá conta de que é possível aprender muito com estudos sobre temas que não são os seus. Isso impede que circulem numerosos trabalhos que mereceriam ter um reconhecimento mais forte.

Para divulgar esses trabalhos que têm uma força metodológica ou teórica inspiradora, seria preciso fazer com que editoras norte-americanas traduzissem obras latino-americanas para o público que não lê em espanhol. Pode-se perceber nas referências bibliográficas de trabalhos realizados na Europa e nos EUA que muitas obras latino-americanas não estão em inglês, salvo trabalhos de autores americanos e ingleses sobre o Brasil.


Tradução de Ana Carolina Delmas




Isabel Lustosa
É cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e autora de "Insultos Impressos – A Guerra dos Jornalistas na Independência" (Companhia das Letras, 2000).
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